Manuel Igreja

Manuel Igreja

Um texto que doeu

As palavras em certos momentos doem. Magoam pelo que dizem, pelo que revelam e porque nos atingem bem no centro da nossa consciência de pessoas minimamente bem formadas e cientes do mundo em redor.

Felizmente para nós, outras existem, no entanto, que com efeito contrário nos encantam e nos fazem nascer uma alma nova a cada ler ou a cada escutar. São estas que no meio da desgraça e da tormenta, permitem que a esperança ainda que murche de oras em quando, não feneça de vez.

Do equilíbrio entre elas resulta em boa parte a nossa noção de valer a pena, o nosso estar de desinquietação e de felicidade. Por isso as palavras nos importam. Não podemos fugir delas a todo o tempo, mesmo nos instantes em que o silêncio entra por nós adentro para nos falar das coisas do mundo e das nossas.

Vem isto a propósito e antes que me perca levado pelo desenhar da caneta, de uma reportagem que li da autoria da jornalista Clara Ferreira Alves no jornal que semanalmente por hábito já muito antigo leio sem ser de fio a pavio. De um modo geral, leio o que me interessa, filtro, assimilo e deito para o canto mental para resguardo e complemento do que vou aprendendo por aí.

No entanto, no decurso da leitura do texto que mencionei, foram-se-me formando nuvens bem cá dentro, abriram-se as torneiras da desinquietação, jorraram as emoções e tocaram-se os clarins da revolta. Dei por mim a não compreender como é possível ainda agora, existirem situações de tanta crueldade, de tanta insanidade e de tanta humana injustiça.

O escrito descreve a bestialidade à solta no dia sete de outubro último, perpetrada pelos monstros cedentes de sangue, prenhes de raiva e de ódio e alucinados devido a coisas que se ingerem e que fazem muito mal. Mitos, fé sem nexo, promessas sem sentido e desumanidade plena. Com tudo isto e muito mais, terroristas entraram casas adentro e arrasam tudo o que lhes estava em frente.

Queimaram, violaram, raptaram, mataram e cantaram possessos por mil demónios num festim impróprio de qualquer ser vivo. Dize-nos o texto que muito e muitos se orgulharam da orgia de sangue. Aplaudiram confundindo os ensinamentos religiosos com as mensagens interesseiras dos mentirosos. Joguetes de insondáveis desígnios de geoestratégia, os loucos e maus subiram ao palco e mataram sem dó nem piedade.

No seguimento, igualmente ávidos de vingança e com o discernimento toldado de ódio igual, do outro lado, os que mandam, mandaram destruir tudo em volta no lado de lá, para que se não diga que não responderam, depois de não saberem acautelar. O texto não fala desta parte por se ficar pelo dia que jamais havia de ter nascido, mas sabemos bem o que se passou e se passa depois e nestes dias.

As imagens e as palavras diariamente ferem-nos e incomodam-nos apesar de tendencialmente perderam impacto por se tornaram usuais. Como noutros cenários, entranham-se-nos e habituam-nos. Sem quer quase esquecemos e desvalorizamos por não ser connosco. Faz parte ainda que não devesse fazer, pois vivemos num mundo que é de todos. Estamos interligados por condição e por obrigação.

Por isso não devemos escamotear a dor provocada pelo pavor que se vê e se lê, pelo horror que inocentes sem idade de pecado sofrem somente porque nasceram no local errado, mas não escolhido, e nos dias que lhes calharam na roda da vida. Uma criança, um animal ou um adulto morto sem apelo nem agravo, são iguais estejam onde estiverem.

Sabemos disso desde sempre. O problema é que conseguimos ignorar, conseguimos aplaudir quando ajuizamos os outros como inimigos próprios ou alheios. Remexemo-nos nas cadeiras, mas não nos erguemos. Encolhemos os ombros sem sabermos e de modo que não vejam.

Sobram-nos as palavras para denunciar, para fazer pensar, para alegrar ou para magoar porque relembrando-nos, nunca nos permitirão dizer que não soubemos. Sobram-nos as outras, aquelas que apesar de tudo nos fazem sentir enaltecidos e enaltecer.

Umas e outras são necessárias. Não as podemos ignorar.



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