Manuel Igreja

Manuel Igreja

Conto de Natal: " O Desejo de Ver o Mar

O DESEJO DE VER O MAR

A sua vida tinha sido a modo de dizer, escorreita e normal. Tranquila mesmo, apesar de uma ou outra aperreação como é próprio da consequência de se estar vivo.

O seu avô tinha regressado do Brasil com muita coisa de seu, contruiu a casa onde morava com estilo arrebitado, embicado e com alguma grandiosidade, tinha uns bons pedaços de bens ao luar com que se via e usufruía, apesar do seu pai ter sido um valdevinos daqueles que dão cabo de qualquer fortuna na boa-vai-ela.

No entanto e apesar disso, como se costuma dizer, ela não se podia queixar. Não se dava a grandes luxos e tinha bem para as precisões. Não se casou porque não arredou de fazer questão em se casar só em caso de amor sentido, mas habitou-se à ideia de estar só e de aquecer os pés na cama com peúgas de lã. Viveu os seus dias como bem quis e sem prestar contas a ninguém.

Mas tinha um desgosto, um desejo melhor dizendo, ainda por satisfazer. Não lhe consumia alma caiada de branco, mas ia deixando uma mancha negra. Nunca tinha visto o mar. Sabia que ele existia, mas só o conseguia imaginar criando-o em si como um mistério de assombrar. O seu pelo menos era coisa linda de morrer.

Levada pelo que ouviu o seu avô contar, tinha-o ela, ao mar, como uma imensidão, um ror de água sobre a terra, que de tanta ser, se fosse vinho não haveria lugar suficientemente grande para o armazenar. Nem que utilizassem toda a madeira das matas que se viviam haveria madeira que chegasse para se fazerem tonéis em que se meter tanto vinho.

Dizemos nós e dizia ela isto assim, pois para entendimento do mundo e das suas coisas, utilizava o saber de experiência feito para o medir e calcular. O esquadro e a balança eram feitos com o saber vivido nos quotidianos em que somos o resultado daquilo que fomos sendo. O seu era passar a vida cuidando das vides e das leiras com eiras e beiras.

Acontece que num certo dia, tomou uma decisão e fez uma jura. Iria até à capela da Senhora da Guia que sempre lhe acorria quando se lhe recomendava para lhe pedir um favor, um pedido de ajuda. Poderia até ser a última, mas se a graça lhe fosse concedida, continuaria para todo o sempre a fornecer o azeite para a lamparina acesa no altar do pequeno templo. Lembrou-se ela e disse:

-. Minha Nossa Senhora, seria assim como que uma prenda de Natal. O que desejo é muito simples. Não quero morrer sem ver o mar. Nem a minha alma se aguentará aí em cima no céu se os meus olhos se fecharem de vez sem ver o mar. Se me concederes o que peço de ir até ao mar, ou mar vir até junto de mim, todo o azeite que as minhas oliveiras derem, terá destino ser distribuído pelos mais necessitados e para esta lamparina que nunca se apagará por mingua de alimento.

Claro que pode ter sido da sua imaginação, mas jurava ela que para selar o acordo, a cabeça da Santa se moveu para cima e para baixo a dizer que sim. Houve acordo, acreditou ela e acredito eu e mais quem quiser. Tanto que sucedeu o que se narra a seguir.

Não foi de imediato pois ainda se passaram alguns dias com lua vagarosamente a percorrer o globo de lés-a-lés. Segundo diziam e ela contou, na noite e Natal depois da Ceia, já com ela recolhida entre os lençóis prestes a mergulhar no abandono do sono, ouviu um som lá fora no terreiro parecido com uma campainha e uma voz grossa a chamar por ela.

Agasalhou-se e foi ver o que seria. Junto às hortências estava um homem com umas grandes barbas brancas sentado numa carraça em nada semelhante às que conhecia por ter e ver. Percebeu um sinal que a mandava subir e subiu. Encantada, acomodou-se em jeito de quem vai fazer uma longa jornada.

Posto isso, o veículo levantou voo. Não tivesse ela deitado mão ao xaile e ficaria sem ele no ar a esvoaçar. Brincalhão e sempre a rir, o homem das rédeas fazia a nave ou que por ela, andar aos ziguezagues e para cima e para baixo. Um doido todo simpático, mais pareceria.

Caso ela não tivesse se segurar a touca com uma das mãos, era capaz de lhe pedir para a deixar guiar os animais que puxavam o carro e que eram pouco maiores que cabritos pouco mais que meãos. A viagem vertiginosa seguiu a bom seguir fazendo rentes às nuvens e com ela a temer ir de encontrão à lua que imaginava muito rija devido a nunca ter sido granjeada nem penteada com bicos de charrua.

Nisto, lá ao longe, pelo romper da aurora e com a estrela d’Alva ainda de brilho feito, começou a ver um grande muito azul que se movia. Era água. Muita água que viu depois, escorria revolta para cima da areia fazendo uma espuma muito branca.

O mar! Fixou-lhe os olhos sentindo que tudo aquilo era ela. Muito mais depois de pôr os pés nos chão e deixar que a água a beijasse até aos tornozelos sem noção de tempo nem de distância. Só não se meteu pelo oceano adentro porque o companheiro de viagem não deixou.

- Meus Deus! Então é isto o mar! Que coisa mais linda. Já posso morrer sem pena pois sinto-me completa. – Disse de si para si mesma.

Mas esperem. Sucede que esta não é a única versão acerca da graça concedida pela Santa prazenteira. Havia quem dissesse porque ainda se lembrava, que na manhã daquele dia de Nata, a aldeia amanheceu com tudo em volta coberto de areia. A neve era areia muito fina.

Resta, pois, a dúvida: Foi a mulher que foi até ao mar, ou foi o mar que veio até à mulher naquela Noite de Natal?

Não sei, mas o certo, é que no alto do monte na capela da Senhora da Guia, ainda arde na lamparina a chama da fantasia.



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