Manuel Igreja

Manuel Igreja

As rogas

Pareciam bandos de pardais à solta, as rogas. Andavam em conjunto, mas não eram livres. Sazonalmente pelo outono, tempo de vindimas, deambulavam, saíam do ninho da aldeia, mas era gente amarrada. Prisioneira da sua condição e das circunstâncias da sua sobrevivência.

Não andavam ao sabor do vento, catavam o sustento das suas necessidades, cantavam, mas não chilreavam. Os rapazes aprendiam a ser homens, as raparigas aprendiam a ser mulheres, os homens faziam fortes, e as mulheres faziam-se suportes. Dormiam, sonhavam, mas também estremunhavam. Padeciam e se calhar nem sabiam.

Vinham das cercanias altaneiras do Alto Douro arregimentados por um parceiro, o rogador. Por norma, salvo uma ou outra exceção, o mesmo rogava os mesmos para as mesmas quintas. Anualmente eram companheiros no percorrer dos bardos, num para lá para e para cá infindo, e no carregar dos cestos rumo ao lagar para que as uvas parissem os mostos.

Nos tempos mais recuados, da minha aldeia logo ali, meia Beira Alta, meia Douro, vinham a pé até à Régua numa jornada de duas mãos de léguas, apanhavam o comboio até às estações perto do Pinhão, Ferrão, Cotas, Roncão, Depois, de novo a pé iam até à quinta onde esperavam já maduras as uvas para a colheita sempre muito esperada e sempre bendita.

Eram acomodadas em cardanhos ao nível da sua miséria aos olhos de hoje em dia, mas normais aos hábitos das suas vidas dum fado que não era triste, porque sempre se resiste à medida de cada saber das coisas. Por entre as brechas de uma tristeza dada como certeza, havia tempo para danças e cantorias, se não a todo a hora, era todos os dias.

Na tarefa de cortar, no encher o balde e despejar balde, no acartar os cestos sempre sob os olhares quantas vezes implacáveis dos feitores, cantarolava-se com o fito no fim do dia. Ceava-se, se a ocasião permitisse namorava-se e bailava-se antes do se deitar nas enxergas para se dormir.

A alimentação era de fraco apeguilho. Pão e sardinha, pouca, caldo de versas com pouco feijão e umas pelicas de bacalhau a roçar o salgado para puxar à pinga. Aos homens que se queriam fortes, permitia-se um pouco mais de sustento para que possuíssem o necessário alento para o carrego e para o prolongar do dia nas noites de lagarada.

No tempo até onde a minha memória vai, a partida das rogas para as vindimas era já feita não a calcorrear caminhos, mas em cima de uma camioneta de caixa aberta. Depois com uma ou outra ligeira melhoria, pouco diferente seria. Sempre tinha sido assim e todos aceitavam. Quem rogava queira o serviço feito, e quem era rogado queria fazer o trabalho a troco do magro pago.

O pessoal que ia para as vindimas, só queria que o tempo voasse e a tarefa acabasse. Na aldeia, duas ou três semanas depois, era também porque mais tardia o tempo da vindima. Descia-se ao vale ganhar dinheiro, de pois regressava-se para repetir trabalhos.
Na minha aldeia também se recebiam rogas iguais às que dela partiam e voltavam. Vinha gente das terras de mais a sul onde não havia vinhedos que se vissem. Repetia-se o ciclo de vidas em círculo.

Os dias eram iguais, mas à noite dançava-se. Não no terreiro da quinta, mas no largo da freguesia. Não havia cansaços nem madraços, e não faltaram oportunidades para o germinar de amores. Com os iniciais e devidos temores muitos houve que deram em flores.

Rapazes e raparigas conheceram-se e gostaram-se. Depois, casaram-se e deram origem a novas famílias. As aldeias uniram-se, os afastamentos sumiram-se pois não há longe nem distância no devir dos seres humanos que dobram os cantos e sempre acham os encantos.

As rogas andavam em bandos, mas não se detinham pelos milheirais. Abandonavam o ninho sem horas para carinho. Seguiam seu destino. Estremeciam, mas não temiam. Venciam sem glória, mas fizeram história.


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