Manuel Igreja

Manuel Igreja

A Mulher duriense

A obra assombrosa e sem medida que é o Alto Douro vinhateiro, é em si mesma uma absoluta homenagem à capacidade humana de fazer acontecer.

Ao longo de gerações, mulheres e homens que nunca foram meninas nem meninos, interagiram com a paisagem melhorando-a embelezando-a para nela e com ela ser possível o surgir de néctares dignos dos deuses do olimpo.

Cuidando mais das cepas que das vidas, estenderam uma imensa tela feita de montes pintados quem nem pintores com muitos cuidados. A poder de muita força e de muito suor escorrido sobre o xisto britado espalhado nos bardos, ergueram o sublime escadario que nos leva quase até ao céu.

Neste fazer e neste modo de ser, a Mulher foi e é a refusta que reforça o alinhamento, a gavinha que agarra os acontecimentos dando-lhe sentido e sentimento. No momento preciso e no local certo, a Mulher duriense esgravatava para pôr o pão em cima da mesa, com sabedoria mediava conflitos e deixava a sua marca na marcha das coisas em direção ao lagar.

Nos tempos de antes, buscava e acartava a lenha para a lareira no Lar, repartia as côdeas de pão e os pedaços de condoito pelos seus, dava força aos outros quando as suas mingavam. Acrescentava sempre ao que quase nada havia para que houvesse alguma coisa. Ponteava as meias com o mesmo empenho com que remendava os rasgos da vida.

Feitas as lides do lar ia cuidar das vides, não sem antes ir de cântaro à fonte suprimir-se de água. Na sua cabeça, a rodilha acomodava o cesto onde seguia a magra refeição para quem nos vinhedos já feitos ou a nascer mourejava à espera das uvas que Deus dava.

Indo buscar forças insondáveis dentro de si, labutava no granjeio e quando possível não se descuidava no asseio. Deitava os olhos aos seus. Cuidadosa, ensinava as coisas do mundo escasso que era seu. Educava a prole. Passava valores de valentia e de honradez.

Não esmorecia, ou pelos menos escondia. Na sua condição de serva ou de senhora, parecia sempre saber qual a hora. Quem nem uma bússola, apontava o Norte. Pouco acreditava na sorte. Por isso incentivava e trabalhava. Sorria quando por vezes lhe apetecia chorar. Era a vela na embarcação que sabia o porto de destino.

Quando nos caminhos da vida ora alegre, ora sofrida, surgiram encruzilhadas, desatava e fazia desatar. Influenciava os de perto que andavam longe a cuidar das coisas e das loisas, e que necessitavam de uma âncora e de um aconchego no regresso ao lar. Apesar de tudo ser um não acabar de aperreações, tudo se fazia para que sempre palpitassem os corações.

A Mulher do Douro amava e sabia amar. Dava, mas gostava de receber. Era grata, mas quase nunca ingrata. Sabia da sua missão de ajudar no erguer desta realidade assombrosa e ímpar.
Se as circunstâncias lhe exigissem ser timoneira não hesitava e tomava a dianteira.

Passava ela a comandar e a fazer as voltas que as vinhas exigem e que os vinhos pedem.
No Douro vinhateiro as mulheres que sempre foram senhoras jamais se tiraram de trabalhos e de cuidados. Guiaram caroças e camionetas, vindimaram, despejaram baldes, chegaram enxofre e sulfate, pelejaram fazendo em cada quotidiano um viver feito arte.

A Mulher do Douro foi e é tudo isto muito mais. Não foi somente ontem. No Douro vinhateiro o tempo não tem medida nem tempo para dar mais tempo pois o ciclo se repete. Feita uma vindima logo se pensa na que está para vir.

Lavam-se os cestos, mas não se arrumam as canseiras. Por isso a Mulher do Douro permanentemente se renova. Desponta e segue. Inteira e limpa para que como as parras coloridas habite na substância do tempo. Por isso foi o que é e será o que sempre foi.


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