Manuel Igreja

Manuel Igreja

A memória

Lembra-se? Pois também eu, mas cada vez menos. Quer dizer, de algumas coisas, pois outras continuam presentes sejam elas de que passado forem. Algumas, sendo já de muito além de longe, mais parecem ser do aqui e do agora. De hoje.

No entanto, outras de ontem, da última semana, do último mês, parecem ser de há muitos anos. É como se um manto levemente diáfano as tape resguardas que estão no canto do sótão onde guardamos aquilo que nos faz. Que nos estrutura.

Estou em crer que somos o resultado daquilo que vamos sendo. Por isso, tenho para mim que essas e mais as outras, todas as nossas memórias, as guardadas e as a guardar depois de vividas, as sabidas e as esquecidas, são de inequívoco valor, são o tesouro do cada um, que é bocado do todo de que fazemos parte. Não estamos sozinhos, é que é não parecendo. Por vezes.

Somos humanos. Por isso, temos o imenso privilégio de memorizar, de errar e de aprender quer com o que se faz e se diz, quer com o que se não e se não diz, mas se pensa, pois se somos donos do nosso silêncio, somos escravos das nossas palavras, obviamente, quando somos inteiros, transparentes e escorridos. Limpos do tóxico e prontos para aceitar e para receber. Para aprender e para ensinar.

A memória é então algo essencial e estrutural. A individual e a coletiva. Individual porque nos permite enxergar o caminho a percorrer. A coletiva, porque nos possibilita saber tudo o que em conjunto foi feito para que com inteligência se opte por se fazer o imenso que ainda não se fez.

Com o otimismo que não pode faltar, podemos concluir que o futuro que já não é o que era ainda está para durar e para melhorar. Bem sabemos que dure o que durar, nasce a cada instante. Por exemplo, neste ponto da prosa, já estamos no depois em relação ao momento em que ela se começou a desenrolar. Já é memória o desenhar das primeira palavra.

Sem dúvida que o nosso cérebro, os nossos miolos, como diziam os antigos, está em constante atividade. Que Deus Nosso Senhor o mantenha escorreito por nós, uma vez que a páginas tantas não temos juízo suficiente para dele cuidar com a conveniência que se recomenda.

Não duvide. Então no que toca às memorias e mais à capacidade de as preservar, manter, divulgar e ensinar, nem se fala. É um descalabro. Não tempos tempo, desculpamo-nos. Não vale a pena, dizem-nos. O que interessa é que o vai acontecer, o que iremos ter. O prometido sem ser devido. O que nos falta porque não conseguimos e o que nos falta porque nos faltaram ao asseverado, não é chamado para o agora.

Na espuma dos dias desta nossa modernidade de quase deuses menores, vamos desaprendendo. Vamos deixando a memória das glórias e dos infortúnios, das coisas acertadas concretizadas e principalmente dos erros cruéis e insanos cometidos, no fundo das gavetas. Nas calendas. Quiçá, na profundeza dos infernos que alguns sentem, mentindo e negando que tempos houve em que horríveis coisas se fizeram acontecer.

Urge, pois, o avivar e o divulgar da memória. Urge que aos mais novos que não sabem o quanto custou ladrilhar o caminho que pisam, se ensine para que se evite repetir os erros feitos. Impõe-se por exemplo lembrar a quem já soube e ensinar a quem ainda não aprendeu, que a Liberdade não é algo sem contraponto. Que é uma flor com espinhos que mirra com o desleixo dos jardineiros que somos todos nós.

Com o conhecimento adquirido através dos registos feitos memória, conseguimos saber do acontecido nos longínquos tempos, dezenas de milhar de anos, milhões mesmo, e sabemos prever o que irá ser daqui a outros tantos e em algumas coisas, mas interesses há que nos querem fazer esquecer e a esconder o que se viveu, porque a memória incomoda e evita a repetição do terrível.

O como, o onde, o quando e o porquê. Eis o suporte do banco em que nos sentámos, as rodas do veículo que nos leva até aos dias ainda por nascer, em cada minuto até ao nosso fenecer. O guiador, o volante, é a nossa memória. A luz que conduz.



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