Manuel Igreja

Manuel Igreja

Os Fundos

Ainda sou do tempo em que o dinheiro, muito ou pouco, tinha o respetivo dono devidamente identificado. Umas pessoas tinham-no ao rodos, algumas nem sabiam quanto tinham, outras tinham-no bastante, mas nunca a ser o suficiente, outras tinham-no para os gastos, outras nem para isso, e outras quase só sabiam da sua existência algures nos bolsos dos outros.

Fosse como fosse, ou seja, como for, nunca ou pelo menos poucas vezes ele é tido como coisa que baste para o desejado gastar ou aferroar. Ele nunca falta porque nunca promete que vem dar às carteiras de cada qual, mas a toda a hora se faz sentir como ausente. Dizem os entendidos nas coisas do comportamento que quanto mais o utilizamos mais dele necessitamos, porque ao vermos e ao sabermos, mais desejamos.

Não sei, mas sinto. Realmente. Já que me lembrei, logo me apercebi. Bom, mas no fundo, quando o espaço em branco e vazio na folha começou a diminuir porque se me começou a desenrolar o escrito, a minha ideia não era estar a escrever acerca do meu e do seu dinheiro. Sem pretender ir ao fundo da questão por sentir não possuir saber suficiente para explorar o tema para lá da rama, antes que me afunde mais, siga-me por favor até ao assunto dos Fundos.

Obviamente dos Financeiros e para ser mais concreto. Podia estar em mente por exemplo a questão dos fundos das calças, ou os fundos dos poços para onde nos estão a encaminhar, mas não. Antes que me desvie no fluir que me está a brotar de cá dentro e me sai para a ponta dos dedos que dedilham as teclas da máquina de escrita, vamos, pois, na linha da minha intenção inicial e de fundo.

Acontece que com o andar do capitalismo, mas não necessariamente no seu evoluir, estamos numa época, num tempo, em que em considerável parte e na maneira de operar dos investidores, os tais poucos detentores de muito dinheiro, se organizam numa coisa a que chamam Fundos para investirem e multiplicarem por muito os seus capitais financeiros.

Antes, os muito ricos e os consideravelmente ricos, identificavam setores e produtos e arriscando, aplicavam o seu dinheiro para criar riqueza concreta, mais ou menos imediata, mas logo necessária. Graças a isso, com maior ou menor justiça conforme a parte do mundo, foi-se criando mais bem-estar para cada vez mais pessoas e a sociedade foi atingindo um ponto de evolução nunca tido ou visto.

Mais parecia pelos nossos lados, na parte ocidental do globo, que tudo estava controlado e garantido. Era só pedir saúde, pois o dinheiro para o básico e um puco mais além, se não era garantido, era mais ou menos certo caso não se cometessem erros de monta ou atitudes condenáveis.

No entanto não foi nem é bem assim. Esquecemo-nos que a única coisa certa na vida é a morte. O mundo tornou-se mais pequeno mesmo que não tenha encolhido de tamanho porque ir de um canto ao outro é uma escanchina, um salto de criança, e o dinheiro como lhe é natural e próprio, deixou de ter barreiras e fronteiras.

Para nosso mal, o obtido de maneiras pouco recomendáveis misturou-se com o outro, e ambos foram dar a mãos de gente de se não frequentar, num processo que inquina e faz diluir as consciências e a boas intenções.

Por falta destas e apesar delas estar o inferno cheio, e também por falta de líderes sérios e a sério, este nosso nundo tornou-se numa terra sem lei. Com sábias especulações e jogadas assombrosamente delineadas, os fluxos financeiros encavalitam-se em bolas de sabão que andam pelo ar sem parar e sem deixar rasto rumo ao éden dos deuses da ganância e da destemperança.

No tempo em que há quase tudo para dar certo, os nossos quotidianos estão mais incertos que nunca e o nosso futuro ameaçado e de se temer. Os interesses insanos e a geoestratégia são a peste negra neste primeiro quartel do século número vinte e três do calendário das nossas agendas. Já esquecemos os horrores sem justificação nem medida de há cem anos.

Normalizou-se o horror. Entregamo-nos ao mando dos Fundos que não deixam o retorno devido na superfície para usufruto de todos. Quem os gere e os detém sabe tudo e vê tudo, mas os cidadãos somente sabem ou julgam que sabem deles. O capitalismo com instinto de lacrau, está a fazer crescer a desigualdade e a fazer medrar o medo.

No fundo, os Fundos estão a afundar-nos. Poderá haver exceções que as há, mas já nos custa ver a luz no horizonte.



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