Manuel Igreja

Manuel Igreja

A menina e o coelhinho da Páscoa - Conto

O que lhes vou contar, não é de agora, já aconteceu há muitos anos e no lugar onde cada um quiser. Quanto ao ter ou não sucedido, fica livremente ao critério de cada qual.

Mas para acontecer, basta querer. Seguindo: - Era uma vez um Coelhinho da Páscoa, daqueles feitos de chocolate, muitos bonitos e com um ar muito mimoso. Daqueles, uma pessoa nem tem se coragem de lhe tirar a roupagem para não estragar.

Aconteceu, porém, que com este de que vos vou falar não foi bem assim. Não teve grande sorte no molde. Algo coisa correu mal e não ficou perfeito nos traços como os outros. No entanto envolveram-no na mesma para seguir o seu destino.

Não deixava de apresentar um ar mimoso, mas as suas feições saíam da harmonia. O chocolate de que era feito depois de solidificar não ficou bem contornado. Ficou diferente. Não se pode dizer que fosse um modelo com todas as curvas no sítio devido, mas era doce como todos.

Fizeram de conta e foi levado no meio de um ror de outros para a prateleira de uma loja de doces e de outras coisas muito apetitosas, como são todas as que se fazem para a Páscoa, altura do ano em que somos todos muito lambareiros.

Ele mesmo também não notou que alguma coisa não estava bem, e nem podia, pois não consta que soubesse o que é um espelho. Depois, teve essa noção, mas não se importou porque se sentia muito bem como era. O resto não lhe importava.

Mas a páginas tantas começou a inquietar-se e a sentir alguma ânsia e uma leve amargura. Reparou que todos os companheiros eram levados dali de ao pé dele, eram escolhidos, mas ele não. Olhavam, viam-no e seguiam em frente. Excluíam-no com toda a leveza fazendo-o sentir-se sem préstimo.

Custava-lhe e sofreu muito. Durante a noite só não chorava porque sabia que as lágrimas ao escorrer lhe iriam deixar sulcos no corpo que o desfigurariam por dentro. Por isso com toda a força estancou o seu brotar. Fazia questão de estar o mais perfeito possível.

Os dias iam passando e ele por ali confinado quando só queria sair para ir conhecer alguma coisa do mundo. Ia-lhe valendo a companhia de um Ovo da Páscoa que como ele ia sendo deixado para trás. Falavam entre eles e entretinham-se. O Ovo falava-lhe das coisas do mundo que dizia ter visto porque da caixa onde foi levado para a loja conseguiu vislumbrar aquilo de que o mundo é feito.

Apoiavam-se e faziam crescer a esperança de um dia saírem dali para verem coisas e para sentirem que valeu a pena terem sido fabricado e moldados, pois tudo tem uma missão e uma finalidade. Eles não queriam ficar sem a sua essência por exclusão involuntária.

Podem não crer, mas a oportunidade de ambos surgiu. Uma menina muito bonita, com ar muito despachado e com olhos próprios de quem consegue sonhar e muito imaginar, surgiu na loja. Assim que entrou, o Coelhinho nosso amigo porque já sabemos dele, estremeceu. Deu logo por ela e sentiu qualquer coisa lá por dentro.

Não lhe tirou os olhos de cima sempre a desejar que ela se encaminhasse para os seus lados, e ela foi. Juntamente com o pai e com a mãe iam colocando coisas no cesto. Foram minutos que pareceram horas ao nosso amigo, mas valeu a pena.

Ao deparar com ele, a menina especou. Fixou-o e gostou logo dele. Pareceu-lhe até que ele lhe piscou um olho e que lhe viu o pequeno bigode a tremer, coisas só possíveis quando se imagina. Pegou nele com carinho e muito cuidado e levou-o na mão. Vá lá saber-se porquê, fez a mesma coisa com o Ovo de que também já falamos.

Quer um quer o outro, quase rebentavam de tão contentes. Valeu-lhes o serem feitos de bom material. Iam sair da prateleira e iam conhecer o que existe para lá de onde a vista alcança. Depois, acontecesse o que acontecesse, não importaria.

Chegados a casa a menina foi direitinha ao seu quarto que não sendo muito grande em espaço, era do tamanho do universo, pois habitavam nele todas as coisas e todos os seres que a ela imaginava. Estava repleto de coisas de encantar. Não havia ali limites conhecidos nem a conhecer.

Dizia a menina que viajava com eles e com mais outros amigos por terras muito distantes e muito belas onde não existe longe nem distância, seguindo encavalitados nas asas de uma gaivota. Só ouviam o som do mar e iam sempre em direção ao sítio onde se via o arco-íris.

Foram tempos infindos nisto. Anos e anos. A menina cresceu e foi contando isto aos seus pais, aos seus filhos e aos seus netos. Agora todos contam a outros. Como eu.

Mas agora vou ter de parar. Lembrei-me de repente que vi ontem numa loja um Coelhinho de Páscoa e se calhar é o tal. Vou depressa ver se ainda lá está.



Partilhar:

+ Crónicas

A Globalização

O Engenheiro Pires

O Circo

Meter Homens

A hora dos Biltres

O longo sono do Douro

A Guerra dos Cravos

Amar odiar

Envelhecer

O Palacete dos Barretos