Vemos, ouvimos e lemos - não podemos ignorar, escreveu Sophia de Mello Breyner acerca da situação de barbárie que via por toda a parte, terminando o poema a dizer que … o nosso tempo é pecado organizado.
Foi um alerta, um clamor de revolta de que, com a devida vénia, me socorro para escrever sobre os horrores que se estão a causar e a fazer-se sentir a toda a hora, com todo o mundo a assistir impávido e sereno, como se as brutais e insanas imagens, que de lá chegam, sejam coisas de um filme de horrores.
Custa a perceber. Estamos no século XXI. Inventamos coisas dignas de puro espanto, fruto do muito saber adquirido e transmitido; despertamos há mais de cem mil anos, mas, no que é pior, estamos na mesma, como se o fel se nos tivesse ficado cristalizado nas insondáveis entranhas daquilo que somos.
Os relatos dos tempos idos dizem-nos que a civilização dos humanos foi devida, em parte, às lutas sangrentas nascidas por causa da cobiça que alimenta a maldade.
Contudo, seria suposto que, nesta contemporaneidade, o bom senso imperasse, evitando-se maldades deste jaez feitas a companheiros na mesma travessia, deste vale de lágrimas, durante cada um dos dois dias, individualmente mais curtos, o do nosso nascimento, e o da nossa morte.
Mas não. Para que se mate com requinte e malvadez, sem que se belisque o sono, basta um pretexto inventado ou a inventar, adequado às conveniências de uns poucos que ordenam a alguns que matem muitos, quantos mais melhor para que do pior resulte o bom para quem não olha a meios e tem o coração mais rijo do que uma pedra, e o olhar toldado pela insensibilidade e pela falta de empatia.
Acerca das guerras que nos ensinaram e nos mostraram, pensávamos já ter visto o horror possível de se causar, pois, como escreveu, há quatrocentos anos, Padre António Vieira, a guerra é um mostro que tudo destrói e de sangue se alimenta. Mas não, pois fácil e infelizmente se pode concluir que é infinito o requinte de malvadez associado à hiena que existe em cada um de nós. Camuflada e adormecida, está no lado escuro da nossa lua.
A infâmia grassa e é mostrada perante a quase total indiferença dos que poderiam fazer a diferença, mas não querem ou não podem ir por aí, porque estão manietados por interesses, neste mundo em que somos todos iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.
O encolher de ombros perante este caso, que nos é apresentado como próprio do direito de defesa por causa do sucedido num maldito dia sete de outubro, quando se perpetraram iguais horrores e crueldades sem igualha a pessoas que estavam somente a viver mais um dia das suas vidas, não deve acontecer, porque, pura e simplesmente, um fazer mal e fazer pior jamais se justifica. O ódio sem limite não pode ser a medida das coisas.
Israel, um Estado organizado, obreiro ao ponto de roubar a terra dos outros, mas democrático como nós gostamos, jamais em tempo algum poderia fazer aquilo que está a fazer. Passou a linha que separa um fanático grupo terrorista de um Estado de direito como deve ser.
Utilizar a fome como arma de guerra é indevido e injustificável. Matar pessoas que buscam desesperadamente umas migalhas de comida não é humano, aperte quem quer que seja o gatilho com a finalidade de manter a fogueira acesa e a guerra sem acabar.
Uma criança é de igual candura e inocência, tenha nascido onde quer que tenha sido. Por isso, nem que só uma fosse vítima deste infinito e miserável horror, seria de condenar a selvajaria. Provocar uma lágrima e um rosto macilento, com os olhos encovados, não é próprio de quem se quer civilizado.
Ter a insanidade e a maldade de mostrar projetos imobiliários para a Faixa de Gaza, com imagens informáticas que revelam o local como mais um futuro espaço de luxo, como se o terreno não tivesse habitantes e donos, é da mais absoluta falta de moral e de decência. É algo que nunca se viu desde que o tempo é tempo.
Nem o mafarrico teria semelhante ousadia e imaginação. Caso as tivesse, nunca se lembraria de fazer naquele inferno um dos paraísos da terra. Que fique lá, lá no seu reino de almas danadas, à espera de algumas destas, mas que se ponha a pau, porque, quando lá chegarem, vão pensar que também mandam no reino da noite eterna, e nada tardará que o exilem para que fiquem mais à vontade, para que também o inferno fique sem rei nem roque.
Já lá está o Hitler, de nome Adolfo, que proporcionou ao mundo imagens de horrores feitos aos judeus, que nada ficam a dever a estas que nos chegam e incomodam, ao ponto de desviarmos o olhar, enquanto sentimos um nó na barriga e um desconforto na consciência.
Por isso, e antes que qualquer um de nós possa vir a ficar terrivelmente registado em película, porque o impensável aconteceu, por dignidade, por solidariedade, e porque ainda sentimos humanidade, não podemos ignorar.
Nunca poderemos dizer, mais tarde, que não sabíamos, que, por omissão, não fomos cúmplices, mais não seja porque permitimos que os políticos que elegemos não fizessem o que tinha de ser feito. AGIR.