Manuel Igreja

Manuel Igreja

O Chega e a vitória de Pirro

A vida tem destas coisas. Existem situações cujos contornos vão sendo desenhados ao longo do tempo, circunstâncias que se vão alterando e que vão influenciando, posturas que, com visão ou com falta dela, se vão perpetrando, resultados que se vão podendo adivinhar e desejar, ou não, e depois algo sucede.

Exemplo cabal é o que aconteceu nas eleições legislativas do dia 18 de maio, deste ano da graça de dois mil e vinte e cinco, mais umas das muitas em que tivemos a sorte e o privilégio de participar desde há meio século, porque, numa bela madrugada de abril, se rompeu o breu que cobria Portugal ao arrepio dos ventos da História.

Os ponteiros do relógio ferrugento, emperrados porque assim os queriam, caíram no chão, e tudo começou a acontecer rapidamente. Fizeram-se juras de bem-querer à Democracia, propagandeou-se a Liberdade, foram-se prometendo mundos e fundos, criaram-se espectativas, teceram-se loas, mas por insensibilidade, por falta de visão e de leitura da sociedade, e por incompetência, foi-se deixando grassar a desilusão.

Apesar dos sinais de alerta, deu-se a formatura política como adquirida e quase imutável, os comandantes não se aperceberam porque não souberam que uns tantos, que foram sendo cada vez mais, marchavam atabalhoadamente fora da forma e, sobranceiramente, deixaram andar, cientes de que somente eles davam ordens ao corneteiro, neste caso, o povo que é soberano, mas nem sempre totalmente sabedor.

A trupe, com o devido respeito, que foi ocupando e circulando pelos corredores do Poder, pura e simplesmente não conseguiu manter o devido respeito, aos olhos de muitos, e permitiu que a demagogia suplantasse a ideia dos valores tidos como de cariz crescentemente lírico e só merecedores de um encolher de ombros por parte dos que, por desencanto, por sentido de revolta por causa dos futuros roubados e por mais um ror de motivos, quiseram a disrupção.

Mediante os resultados verificados nas últimas eleições, espantou-se quem não viu e andava desatento, quem foi sobranceiro e desvalorizou os sinais, quem andava mal informado, porque pensava que sabia tudo, e quem não soube e não sabe ler a sociedade em que se movimenta, ao contrário de um certo magarefe que tem um feitio refinado e um tal sentido de oportunidade que aproveita dizendo uma coisa e o seu contrário no imediato e com toda a desfaçatez.

A agremiação que lidera, o Chega, obteve um soberbo resultado na meia dúzia de anos da sua existência. Organização política, de um só homem ao leme, alcançou o que alcançou e provocou uma profunda modificação na estrutura política do nosso país. Havia dois partidos que faziam de trave da edificação, mas agora passou a haver três.

Como ponto de reflexão, coloca-se agora a questão do como vai e ser e até quando, põe-se a questão do como lidar com ele e com os seus trejeitos de bulldog mortinho por ficar sem açaimes, prometendo ir a tudo e contra muitas das coisas identificadas como erradas por ele, mas também por toda a gente de bom-senso. Como dizem os brasileiros, na prática, a teoria é sempre outra. Veremos se algo se vai alterar ou se fica tudo na mesma para vermos como fica. Digo eu.

Entretanto, tenho para mim que o Chega não tem estrutura física e mental para lidar com a dimensão recém-adquirida, assim como não tem um nervo ideológico minimente definido para lhe dar coesão. Quero acreditar que a maioria dos votantes, desta vez, não se identificam com a sua referida ideologia de extrema-direita. A cruz colocada no boletim de voto foi um simples, mas importante gesto de protesto.

Por isso, e para fazer jus ao título, a vitória do Chega pode ser uma vitória de Pirro, rei da Macedónia que, no ano de 279 a.C., derrotou os romanos numa batalha para a qual utilizou todos os seus soldados numa mortandade que deixou o seu exército sem possibilidade de se renovar e de crescer por falta de mais homens para a função.

Conta-se que, ao ser parabenizado pelo feito, o rei Pirro terá dito: - mais uma vitória como esta e estou perdido.

Será que de novo a História se vai repetir, primeiro como tragédia e depois como farsa, como proclamou um certo senhor? Veremos padre, como dizia a minha avó.



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