Manuel Igreja

Manuel Igreja

Temos Papa

Este nosso mundo, neste nosso tempo, atravessa momentos que nos fazem ver a tranquilidade a esfumar-se, a desvanecer-se como ave colorida que levantou voo junto de nós, e se afasta em direção ao longe, ao infinito que, sendo sem fim, nos aumenta um sentimento de inquietação.

Sem querer, apesar de nos esforçarmos para acreditar, uma vez mais, que a História se repete e que tudo voltará a ser como dantes, ou até melhor, sentimos a alma a enegrecer-se-nos mediante os acontecimentos insanos, que se desenrolam perante os nossos olhos.

Sabemos, ouvimos e lemos, por isso, não podemos ignorar que as coisas não estão fáceis nestes dias, em que mais parece que Deus anda adormecido. A barbárie que campeia e se espalha, a mentira que se vai sobrepondo à verdade e quase já não conta nem influencia, o terror que se alastra, e o matar com toda a indiferença e mesmo com algum prazer, como nas épocas idas, são agora o novo normal.

Enquanto isto, vão-nos deixando os últimos representantes da última geração de líderes carismáticos, de estadistas que sabiam o lado certo e recomendável das coisas, políticos que conheciam o lado negro da lua, mas que sabiam, ao mesmo tempo, indicar-nos o lado mais radioso do sol.

Porque já viveram todos os dias que lhes coube em sorte, vão fenecendo sem que deixem sucessores ao seu nível estrutural, mental e cultural. Sem visão, mas com extrema ambição, os novos timoneiros seguem no leme da nossa embarcação, travestidos de navegadores, formatados que são pelo seu íntimo de piratas, sem perna de pau e sem venda nos olhos, para fazerem de nós cegos, que não conseguem nem querem ver.

O dos últimos, que nos voou para o paraíso, foi o Papa Francisco, líder sem medida que, com o seu exemplo de humildade e de humanidade, soube ser respeitado, ouvido e considerado por cidadãos de todas as cores e de todos os credos. Permitiu que fosse e que seja possível valorizar-se a simplicidade como força motriz, como núcleo centrípeto que a todo o instante explode para fortalecer e para espalhar o bem-querer e a solidariedade.

Revelou o segredo das coisas simples em todo o seu esplendor. Deixou ecos, que perduram e perdurarão muito para além da sua e da nossa vida terrena, contra o mal que se pratica, se soubermos dar-lhe atenção e continuidade. Deixou um legado que urge ser perpetuado e respeitado, naquilo que vai muito para lá dos credos religiosos.

Escolhido que foi o seu sucessor, o Papa Leão XIV, podemos acreditar que a obra do Papa argentino tem condições para ser respeitada e continuada. Como ele, o novel pontífice provém de uma Ordem Religiosa, num percurso pessoal que o levou a interagir com os descamisados, num quotidiano feito de partilha de sentimentos, tanto de alegria como de dor. Caminhou descalço, sobre as pedras dos rios, com os pés doridos e com o coração palpitante, dando e recebendo sensações e alimentos; soube ver e sentir o concreto da vida real envolto em sonhos de coisas melhores a conquistar.

Ser humano, recheado de sabedoria, mostrou que sabe ler nas entrelinhas e que sabe ver o que se desenha para lá de onde a vista alcança. Ao escolher o nome pelo qual ficará registado nos anais, revelou que, como o seu homónimo anterior, soube ver, no virar do século XIX para o século XX, numa repetição da História, que está a acontecer uma Revolução nas estruturas da sociedade.

De novo as máquinas se afiguram aos humanos como coisas muito perigosas, por via da substituição que podem permitir. Teme-se, outra vez, que os seus préstimos resultem em falta de necessidade de braços e de cérebros. Adivinha-se mesmo que o inevitável já está a acontecer, com os impossíveis a virarem realidade.

Ele sabe e nós sabemos que, no entanto, agora pode vir a ser pior. O mando dos temas e das coisas começa a escapar das nossas mãos. A criatura pode, inclusivamente, suplantar o criador, avarento que é do potencial de riqueza que pode ser criada sem tino e sem destino certo ou conveniente.

Na insanidade e no desconchavo reinantes, o Papa Leão XIV começou, desde logo, a reluzir. Cuidemos para que a sua chama herdada se não apague. A sua voz, a cada dia, deve ser um clamor. Poucos restam assim.



Partilhar:

+ Crónicas

Temos Papa

O Lavadouro Público

A Globalização

O Engenheiro Pires

O Circo

Meter Homens

A hora dos Biltres

O longo sono do Douro

A Guerra dos Cravos

Amar odiar