Manuel Igreja

Manuel Igreja

O Lavadouro Público

No tempo dos meus verdes anos, ainda me lembro bem, lá na minha aldeia, havia o lavadouro público. Era assim a modos que um tanque com água corrente, onde as mulheres iam lavar as roupas a seu encargo com a regularidade exigida. Ora, porque a língua não tem osso, e porque a conversa é coisa própria de quem tem fala, não havia sítio melhor para se trocarem dois dedos da mesma. Assunto, havia sempre, e caso não o houvesse, inventava-se que a invenção é algo bem humano.

Era pois então no lavadouro público que tudo se lavava e onde tudo se expunha, pois é bem sabido que o quotidiano de cada um, está bem espelhado nos atavios que tira do corpo em hora de muda. Nada havia que escapasse aos olhos alheios e coscuvilheiros das lavadeiras, que nos entrementes das voltas das roupas, se entretinham a passar em revista a vida dos outros. A par dos trapos que se lavavam, quantas vezes se não conspurcavam as imagens de conterrâneos e afins.

Pelo lavadouro e pelas bocas das lavadeiras, tudo passava num entretém ora perigoso, ora inócuo. Era lá também que se tiravam desforras e se pediam meças, em verdadeiras batalhas verbais quase sempre de nível rasteiro e pouco dignificante quer para quem directamente participava, quer para quem ouvia. Ali tudo se sabia, e não havia segredo mais duradoiro que uns breves instantes. Era como se o próprio vento se encarregasse de espalhar as novidades, principalmente as de teor negativo e maledicente. O bom povo no seu pior, tinha ali a mais fiel expressão.

Este quadro é de resto bem conhecido de todo nós. Ao recordá-lo agora, não o faço com o exclusivo intuito da nostalgia ou do registo histórico. Trago-o a terreiro, porque o nosso país me parece cada vez mais um enorme lavadouro onde tudo se suja e nada se lava. Olha uma pessoa, e o que vê, são os detentores dos mais elevados cargos da nação, entretidos a discutirem assuntos e a esgrimirem argumentos na praça pública, com se fossem o mulherio de língua destravada dos meus tempos de rapaz, quando pouco mais havia para passar o tempo, do que dizer mal de alguém, antes que alguém o diga de nós.

Governantes, juízes do mais elevado estatuto, magistrados da mais elevada condição, patrões e sindicalistas, não tratam dos seus desaguisados no recato dos seus gabinetes. Bem contrário, vendo frente a si, um microfone ou uma câmara de televisão, desatasse-lhe a trave da língua, e escarrapacham tudo o que lhes está atravessado. Fazem alarde de dossiers reservados, enviam farpas, lavam as mãos com toda a ligeireza com que antigamente nos lavadouros públicos se aviavam as bacias de roupa suja, e se despachavam interlocutoras incómodas.

Neste enorme lavadouro público inundado ao ponto de ter virado lamaçal, já não há segredo que o seja mais que o tempo de um suspiro. Coisas de grande importância, onde o sigilo é condição essencial, rapidamente e como por milagre, passam para o conhecimento de todos da pior maneira. Surgem envoltas em estrondos que são grandes, mas são pífios, por serem de pólvora seca. Logo lhes dá um ar, e desfazem-se por entre as veredas da indiferença e da irresponsabilidade cívica e colectiva. Enquanto isso, sentimos que a impunidade é dado assente, tanto a de quem é objecto do dedo acusador, como a de quem com condenável indiscrição acusa no local e na hora errados.

Lava-se a roupa suja pura e simplesmente porque se quer ir para a praça pública, nem que para isso se tenham de deitar umas nódoas aqui e ali. Chegamos a um ponto tal, em que nem sabemos bem o que são nódoas ou pedaço limpo, de tantas elas serem. Ouvimos o palavreado no lavadouro, mas já nos é indiferente. A verdade misturou-se com a difamação, mas pouco nos apoquenta saber quem mente ou quem fala serio. Suspeitamos de todos.

Por alturas em que começo a ter alguns cabelos brancos, na minha terra que é o meu país, já não há moçoilas ou matronas a lavar roupa suja real ou figurada em sítio aberto, mas há uns figurões a fazer-lhes a vez procurando fazer-nos o ninho atrás da orelha. Enquanto isso, a democracia sofre de uma moléstia chamada suspeita. Vamos a ver se lhe sobrevive.



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