Manuel Igreja

Manuel Igreja

O meu tio Zé

Todos temos um tio. Não andarei muito longe da verdade, se disser também que todos temos ou tivemos um tio assim um bocado mais especial com o devido pedido desculpa para os outros tios que o sendo sempre nos tocam desta ou daquela maneira.

Poderá haver e bem sei que há, uma ou outra pessoa que devido às circunstâncias da vida não tem tios, mas pronto. Faz de conta que eu que tenho muitos, lhes empresto um dos meus. Só não pode ser é o meu tio Zé porque já anda por outras bandas e porque me é demasiadamente especial.

Pouco mais velho era que eu, tinha mais cinco anos de idade, mas a dado momento da minha vida, naquela altura em que nos julgámos eternos e tudo se nos afigura bonito e sem fim, fomos meio companheiros de brincadeiras.

Quando eu comecei a fazer a barba já ele a fazia há um bom par de anos, mas de oras em quando eramos comparsas nas devidas distâncias. Eu adolescente, admirava aquele tio de sorriso sempre presente encimado por um olhar que reluzia e me dava todo o afago de cada vez que me via.

Convivi com ele desde muito cedo. Deu-se o caso de passar semanas em casa dos meus avós desde que andei de cueiros, por isso acabou por ser sempre aquela pessoa que eu gostava de ser daí a uns anos. Quando fosse adolescente quando ainda era menino, e quando fosse adulto quando ainda era adolescente.

Gostava de saber andar de motorizada como ele quando mal sabia andar de bicicleta, e ansiava saber guiar um carro como ele quando ainda mal sabia meter as mudanças e não tinha idade para possuir carta de condução ou meios de comprar automóvel.

Não tinha eu, mas tinha ele. Lindos, todos lindos. Então um Mini Cooper S com dois carburadores é que era. Uma verdadeira máquina que soltava os paralelos da estrada quando arrancava em primeira e acelerador no fundo ao jeito dos corredores. Um verdadeiro relâmpago vermelho na estrada do Pinhão. E os piões? Bem ainda vejo tudo à roda como via quando ele fazia um pião ao dar a volta no largo sempre que me ia deixar em casa. Uma autêntica arte a fazer rodopiar um automóvel.

O meu tio Zé andou na estrada da vida sempre a duzentos. Sempre num verdadeiro corrupio metido em atafonas e mil azáfamas. Teve tempo para todos menos para ele. Quase me apetece dizer que se Deus está em todo o lado o meu tio já tinha estado. Não era de estranhar que em qualquer recanto de Portugal ao referir o apelido “Igreja” ou a terra de origem logo alguém dissesse que o conhecia.

Podemos dizer que era assim tipo “arroz de quinze”, mas de primeira qualidade. Quem o mencionasse seria sempre para lhe gabar os primores na ação e no trato. Um verdeiro senhor. Um mestre na educação e na vontade de servir, um sabedor nos meandros do negócio e uma personalidade inteira na atitude cívica.

Não tenho bem a certeza, mas acho que para ele o dia tinha mais de vinte e quatro horas e devia estar sempre ligado a uma corrente muito especial com pilhas de longa duração. Deu-se ao negócio, entregou-se aos bombeiros que comandou deixando obra feita e digna de se ver, mas acho que se esqueceu dele mesmo. Não se cuidou convenientemente.

Na última vez que o vi dei-lhe um raspanete. Encontrei-o por acaso um dia pelo entardecer numa clínica na Régua onde ia fazer um exame ao coração que tinha sido por ele adiado uma série de vezes por falta de tempo disponível por entre os seus inúmeros afazes.

Puxei da minha autoridade de sobrinho e disse-lhe que tivesse juízo e que olhasse por ele. Vejam lá logo eu que lhe andei às cavalitas. Se adivinhasse que de madrugada ele ia ser levado nas asas do anjo negro, tinha-o mas é desviado para irmos jantar e para conversarmos mais um pouco.

A sério. Tenho pena de não lhe ter dito o quanto gostava dele e de nunca lhe ter pedido para me ensinar a guiar como ele guiava o tal Austin Copper S de carburador duplo. Ainda hoje não sei fazer um pião. Mas um dia quando me derem uma nuvem no céu para eu conduzir vou aprender com ele. Entretanto, sigo os meu caminhos tendo-o muitas vezes como referência.


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