Inês Pinheiro Ramos, de 89 anos, é uma das últimas habitantes de França, aldeia no concelho de Bragança, que guarda memórias do tempo do Estado Novo quando havia quem tentasse chegar na clandestinidade ao país França e acabava ali, enganado pelos “passadores”.

Os “passadores”, assim chamados, a troco de dinheiro guiavam na raia quem procurava abandonar o Portugal da ditadura, contornando as fronteiras guardadas. Um dos 11 irmãos de Inês, Rui, três anos mais novo e entretanto já falecido, era um dos passadores da aldeia, a “França sem Paris”, como a descreveu Inês, que fica a seis quilómetros de Espanha e a 16 de Bragança.


“Constava-se que perto da fronteira havia gente que ‘passava’ e as pessoas vinham à procura. Os ‘passadores’, quando sabiam que andava por aí alguém à procura, aproximavam-se. E a alguns enganavam-nos”, recordou Inês, reportando-se aos anos 60 do século XX.

Inês recordou que a pobreza e o medo de ser obrigado a embarcar para a guerra colonial precipitava a gente para uma viagem incerta. Não raras vezes, eram os pais que financiavam a travessia. Eram 10 contos por cabeça, equivalente hoje a 50 euros, uma quantia elevada na época.

Para muitos, apresentava-se assim a primeira viagem que iam fazer na vida. Na aldeia de França, isso facilitava a vida aos “passadores”, que tiravam proveito dos mais inocentes.

Havia uma referência que circulava de boca em boca, uma ponte que haviam de encontrar ao chegar ao país França. Ora, na aldeia de França passa o rio Sabor e há uma ponte. E aí há ainda hoje uma placa em pedra onde se lê “França”.

“E os ‘passadores’ aproveitavam-se dessa situação. As pessoas acreditavam que já estavam em França (país). Tudo parecia bater certo. (…) Ficavam sem o dinheiro e em Portugal”, partilhou a narradora.

Inês explicou que a ponte “verdadeira” era entre Irún, Espanha, e Hendaye, França, onde terminava a viagem “a salto”, clandestina.

Chegava-se à aldeia de madrugada e deixavam-nos junto à placa. Depois iam embora. Os “passadores” deixavam como última indicação que “seguissem quando pudessem” a ponte que, afinal, só os levava ao outro lado da aldeia.

Quando nascia o sol e o movimento voltava às ruas, perguntavam aos transeuntes onde estavam. E apercebiam-se do embuste. Assim foi, fez contas Inês, durante pelo menos dois anos. Alguns dos burlados regressavam a casa, outros voltavam a tentar mais tarde e acabavam por conseguir.

Mas alguns nem chegavam à “França sem Paris”. Inês recordou o caso de quatro rapazes que vieram de Fátima, distrito de Santarém: “O meu irmão estava em Espanha, com outros. Fui ter com eles a Bragança, de táxi, para lhes dizer que o meu irmão chegava no dia seguinte. Nesse dia seguinte, foram presos”.

Os quatro jovens estavam hospedados numa pensão em Bragança. Foram denunciados sobre a intenção de sair do país, mostrou convicção Inês, expressando, mesmo volvidos mais de 50 anos, indignação: “Eles estavam em Portugal, não tinham nada que os prender”.

Os detidos viram-se obrigados a entregar o “passador”, Rui, irmão de Inês. Foi preso pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a PIDE. Rui foi levado para o Porto, onde ficou “dois ou três meses”. Destino semelhante teve outro “passador” da aldeia de França.

A PIDE queria saber quanto já tinham “passado”, quem e de onde. Inês acha que alguns “passadores” foram torturados. Outros, não. Acabaram, os dois da aldeia de França, libertados porque “não tiravam nada deles”. Igual aconteceu aos rapazes de Fátima. Foram soltos, mas não se livraram de responder em tribunal em Bragança, soube Inês.

Inês foi também clandestinamente para França, o país, em 1968. Não precisou de “passadores”, por conhecer tão bem a zona quanto eles. Seguiu com o marido, os filhos, um rapaz de 16 anos, uma rapariga de 14, e uma sobrinha. Para farnel, levaram fumeiro que tinham feito em casa. De estudos, Inês levava a terceira classe, porque “diziam na aldeia que as meninas não precisavam da quarta”.

Foram, evitando a guarda, até Calabor, Espanha, a cerca de oito quilómetros, onde havia um único taxista que fazia o transporte até ao comboio, e isso sentia-se no preço.

Foi nesse comboio que conheceram outro português. “Veio da Madeira, por baixo de um avião, nas rodas, e aterrou em Lisboa. Disse que se meteu num comboio em Lisboa. Não pagou porque assim que via o revisor metia-se no quarto de banho. Sem dinheiro, sem nada, conseguiu chegar a França”.

Inês e a família foram trabalhar para uma fábrica de plásticos, em Amiens, perto do Canal da Mancha, onde ficou por

13 anos.

Para tantos outros, foi mais difícil. Mas Inês, quando questionada sobre se valia a pena, respondeu sem hesitar:”Valia sempre a pena. Valia, valia”.


*** Tânia Rei, agência Lusa ***



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