Manuel Igreja

Manuel Igreja

Douro: O eterno paradoxo

Crise. A palavra que se ouve desde que o Alto Douro Vinhateiro foi demarcado e regulamentado, a pedido de alguns locais diretamente interessados, e por conveniência do Estado Central, andava o calendário pelo ano de 1756.

Riqueza, outra palavra menos propagada, mas igualmente referida ainda os traços do mapa e as letras do decreto estavam a modos de borratar o papel por falta de tempo para secar e embelezar. Poucas vindimas foram necessárias para se estender o negócio e para se perceber que o líquido dos pipos era como se fosse ouro vertido para ser escorropichado e apreciado.

No decorrer da segunda década do século XX já o vinho do Porto, era tido e havido como um dos grandes tesouros nacionais. Daí até receber o galardão de embaixador do nosso doce país, foi coisa de uma mão cheia de pipas vendidas e exportadas para a velha aliada Inglaterra.

Fossem as coisas bem feitas e bem repartidas e poucas ocasiões haveria para no Alto Douro, terra de vinho e de gente, se ouvir, ou pior, se fazer sentir a crise que teima em nos atormentar. Mas não. Caso não existe ano, em que como som de badalo de sino a chamar para a missa, se não escute ou se não leia a palavra que indicia desconforto, injustiça, inquietação e sofrimento.

Caso fosse possível ser-se doutor de Coimbra com estudos sobre situações paradoxais, aqui haveria mais matéria de estudo, que míldio em tempo húmido e seco. Convirá o leitor ou a senhora leitora, que crise e riqueza em simultâneo na casam bem. Contradizem-se. Só que no Douro, a simultaneidade transforma-se em paradoxo.

Desde que o negócio do vinho se afirmou, a riqueza notou-se, só que para alguns poucos a quem ela aprouve, mas também de imediato e ao longo das décadas, a escassez e a pobreza não foram meigas. Não faltou fome. Inclusivamente daquela que quase mata. Pelo meio, e até numa situação relativamente cómoda, também houve alguns remediados, a quem não faltou barriga farta e vida de boa-vai-ela.

Mas como dizia o poeta: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Por isso, agora nem esses se podem ufanar e têm de se aperrear. O rio deixou de ser de mel desde há coisa de três décadas para tudo e para todos. Queixam-se os de maiores posses porque o mercado é global e impiedoso, queixam-se os logo a seguir porque se sentem desamparados, e queixam-se os de vindima de um dia, porque sentem que andam a deixar deitar fora e trabalho árduo para o lixo.

As coisas já nem para um caneco dão, sentem estes e dizem todos. As uvas continuam a ser uma maravilha, os vinhos são de pedir meças aos mais pintados, mas o retorno financeiro parece água a escorrer em rego cheio de luras. Pouco chega à casa de cada um. Com o S. Martinho a chegar, enquanto se desenrola a lavra deste escrito, quase nem dá vontade de furar o pipo.

No entanto e chegado a este ponto, não posso deixar de mencionar uma nova situação de paradoxo. Sabemos todos que não inventei nem mentei no escrever imediatamente antes deste parágrafo nem nos anteriores. Longe de mim e juro que é a verdade nua e crua. Pelo menos no meu modo de ver, façam o obséquio de me contradizer se acharem por bem.

Contundo, e daí o paradoxo, as notícias dão-nos conta muita frequentemente de investimentos de milhões de euros na compra de quintas no Douro ao ponto de podermos dizer que a “carne da perna” está extremamente apetecível para quem é especialista em investir e não brinca em serviço.

O setor da vinha e do vinho no Alto Douro está a ser visto como rentável que baste para atrair quem percebe da poda. Ou não? Será que está tudo “grosso”? pergunto eu antes de me ir molhar a boca.

Isto de paradoxos dá-ma cá uma sede!...e azia.



Partilhar:

+ Crónicas

A Cidade

Abandonados

A memória

A Democracia armadilhada

A Agricultura

Há lodo no país

Os Fundos

A Oeste nada de novo

Um texto que doeu

O olhar