Manuel Igreja

Manuel Igreja

De vinho, e do vinho

Numa primeira impressão, pode parecer quase são a mesma coisa o que se refere no título, mas não. Nem de perto. Duas simples letras alteram em absoluto o que se quer dizer ou identificar. O diabo está nos pormenores como se costuma dizer.

Ser alguém de vinho é algo de muito mau, pois quer dizer que a essa pessoa lhe puxa em demasia esvaziar copos por via das securas que lhe atazanam a alma nos descaminhos que a vida tece. Algumas, são mesmo de mau vinho mesmo que o vinho seja bom, e então é fugir delas porque mais parece que o mafarrico se lhes entra no corpo e lhes faz querer virar tudo ao contrário.

Quando se é de vinho, nada bate certo, tudo se desconchava num ciclo infernal quase sempre com mau fim. No fundo é uma maldição que se abate sobre quem não resiste e não vence porque se não convence que consegue encontrar solução naquilo que tem dentro de si e não sabe o que é.

Por outro lado, ser do vinho é algo de muito bom, para não dizer excelente, porque seria demasiada pretensão assim me referir a algo a que não pertenço mais que ligeiramente em termos práticos. Fui nado e criado por entre os bardos e as vindimas, mas os caminhos levaram-me a outras colheitas e a outras tarefas.

Ficou o gosto e o pendor para o mundo das coisas do vinho. Mais não seja, resido por entre a fina flor das paisagens transformadas em vinhedos que louvam o esforço humano na obra sem tamanho do granjeio e do maneio que permitem meter o sol dentro de garrafas servidas nas mesas de quase todo o mundo.

Ser do vinho, diz-me a sensibilidade e o pouco saber de experiência feito que é algo de sublime quando se é inteiro no que se faz em redor das videiras e por entre as cubas, para que da sublime criação resultem vinhos que incorporam a essência de quem os produz de fio a pavio.

Ter semelhante mister, é passar noites em claro porque se têm bens ao luar, é sentir arrepios sempre que o céu enegrece, é sentir calafrios quando a canícula beija mortalmente os cachos estorricando-os e roubando-lhe a sumarenta beleza, é denodadamente combater as pragas sem tempo para curti mágoas, e é sentir uma imensa alegria quando nos olhos de quem prova se nota reluzir a anuência nascida do gosto.

Tenho para mim que uma pessoa que seja do vinho anda com a alma em permanente granjeio, pois se mourejar é trabalhar para um resultado que se almeja excelente, olhar para cada vinho que se faz, é como olhar para um filho por tanta ser a identidade sentida, e de tantas serem as aperreações que se têm durante o seu criar desde a poda até ao engarrafar.

O puxar de cada rolha será digo eu, um celebrar e um mostrar a obra que se elaborou ao jeito do artista que esculpe uma pedra ou que pinta uma tela para que todos vejam o que vale a pena experimentar, ver e saborear. Algo único no produto chamado vinho.

Na lavoura existem centenas de outras criações, mas alguma se pode comparar a esta em termos de afinidade. O vinho é um verdadeiro registo inscrito, mas não escrito, do território, das condições que se fizeram sentir, e dos cuidados que se tiveram melhorando a natureza com a única certeza de que assim deve ser para fazer acontecer.

Ser do vinho é isto e muito mais. Quase diria que é ser-se um poeta que escreve ao rasgar a terra sonhando com quimeras que se concretizam no lavar dos cestos.

Mas ser de vinho, sendo sem vício e quando se não passa sem um dedal, ou dois, vá, quando apetece e quando a ocasião merece, também pode ser aconselhável e bom. Recomenda-se mesmo, apesar do que afirmam os fascistas do comportamento que ébrios com o ser saber não concordam que o mal não está nas coisas, mas sim na maneira como são usufruídas e apreciadas.

Por isso, com licença, mas está-me a apetecer. Está-me a puxar para ir molhar a boca. Á nossa!!



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