Ana Soares

Ana Soares

A reforma da imoralidade

Quando decidi estudar Direito, sempre tive muito próximas as ideias de justiça, sistema ao serviço dos cidadãos, valores essenciais à dignidade humana, especialização, órgão de soberania e proximidade. Confesso que grande parte destes princípios para mim essenciais e estruturantes foram postos, na minha opinião, em causa com o novo mapa judiciário.

Foram constituídas 23 super comarcas as quais, já desde o início, deixam muitas reticências a quem conhecer o país real e vê para além das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Dizem-nos que esta é a reforma que aproxima os cidadãos da justiça, que promove a especialidade e a celeridade dos processos. Eu diria que é a reforma da régua e esquadro, da injustiça e da imoralidade. Vamos então por partes.

Desde logo, parece-me que estamos a construir uma justiça para cidadãos que a possam comportar financeiramente, penalizando os cidadãos mais frágeis. Se é verdade que o apoio judiciário funciona relativamente bem no nosso país, também o é que o mesmo não pressupõe despesas que este novo mapa coloca na ordem do dia. Despesas com testemunhas (porque há muitas para além daquelas que se pode apresentar em Tribunal para a parte contrária – se perder – pagar), as distâncias – e despesas inerentes – para que as partes se desloquem a Tribunal, as despesas das deslocações que se repercutem nos honorários dos Advogados,… Isto apesar de o Ministério da Justiça afirmar que “esta reforma trará muitas poupanças aos portugueses”… Lá está a diferença entre o mundo virtual e o país real…

Por outro lado, a imoralidade do antagonismo entre o “façam o que eu digo mas não façam o que eu faço” agrava-se! Entre belos discursos de apoio à interioridade e medidas que prometem a chamada “discriminação positiva”, eis que o novo mapa judiciário se traduz num verdadeiro incentivo à desertificação do interior. Nós transmontanos pagamos exactamente os mesmos impostos que os nossos concidadãos do litoral mas, na prática, temos muito menos acesso aos serviços públicos essenciais e órgãos de soberania. Passará pela cabeça de alguém comparar o que é fazer 80 Km na área metropolitana de Lisboa ou no nosso distrito de Bragança? Terão as mentes brilhantes por detrás da reforma percebido o que é distanciar os cidadãos de serviços que emitam documentos tão necessários como o registo criminal?

Imaginemos então um julgamento às 9:00h, em que a parte e as respectivas testemunhas têm que vir a Bragança – por exemplo – de transportes públicos. Quem suportará as dormidas que as testemunhas terão que fazer na capital de distrito, uma vez que só há transporte para grande parte da área abrangida pelo tribunal uma vez por dia? E mesmo quanto ao ordenado que a testemunha não aferiu… Será lícito (e justo?!) imputar à parte que perder o julgamento as despesas de dois dias de trabalho só porque algures no Ministério alguém se lembrou que esta seria a reforma de que a justiça precisava? Do meu ponto de vista não. É verdade que o novo mapa judiciário prevê que “algumas destas secções de proximidade, prévia e devidamente identificadas, assegurem preferencialmente as respectivas audiências de julgamento” mas o real significado – e sobretudo a efectiva aplicação no terreno – ainda está no segredo, não dos deuses, mas das mentes brilhantes dos reformadores deste país.

E tantos outros exemplos do real caos em que se encontra a justiça poderiam ser dados… O Citius – plataforma fundamental de justiça – está há mais de um mês “congelado”, isto apesar de quem não trabalha com ele afirmar o contrário na televisão… A dificuldade prática que terão os processos em que se discute a propriedade e a delimitação da mesma – e tantos que há na nossa região! – quando se aferir necessário que o Magistrado – de um Tribunal a dezenas de Km de distância – se desloque ao local para que seja formada a convicção do Tribunal… Os funcionários judiciais que todos os dias se deslocam de táxis para os novos locais de trabalho e aqueles que têm horário reduzido porque os transportes públicos não lhes permitem realizar o horário normal… Tudo isto pago por nós contribuintes, claro está!

Os Tribunais são Órgãos de Soberania e sempre que se legisla sobre os mesmos este devia ser um baluarte no pensamento do legislador. Não se compreende que em pleno século XXI em vez de se limarem as assimetrias, cada vez se dificulte mais o contacto entre a administração da justiça e o comum dos Cidadãos e se negue – qual cego que não quer ver – o que está a acontecer. Porque está não é a reforma do mapa judiciário. É a reforma daqueles que querem fechar uma parte do país, de forma imoral, por decreto-lei.


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