Renegar um partido e concorrer por ele: incoerência ou artifício político?
Os partidos políticos não devem fechar-se em si próprios. Pelo contrário, têm a responsabilidade de acolher quem, com um passado de intervenção cívica e reconhecimento público, possa trazer valor acrescentado a uma candidatura, seja ela autárquica ou de outro nível.
Como devemos classificar a conduta de quem se afirma independente e distante de um partido, decide depois candidatar-se sob o seu símbolo?
Será isto oportunismo político, expressão de uma prática em que os princípios são descartados em nome da viabilidade eleitoral?
Ou será antes uma forma de cobardia estratégica, recusar o compromisso quotidiano com o partido, mas aproveita-se do seu eleitorado quando chega a hora do boletim de voto?
Ou, ainda, será um cálculo frio e pessoal, mascarado por uma suposta independência moral?
A incoerência é evidente. Rejeitar a ligação orgânica a um partido e, em simultâneo, beneficiar da sua máquina, dos seus recursos, da sua estrutura e do seu prestígio, é exercer uma cidadania política de conveniência. Pior que isso, é instrumentalizar o eleitorado, vendendo uma imagem de independência que não corresponde à realidade.
E, quando esse tipo de indivíduos representa o pior que a sociedade reconhece: arrogantes, oportunistas, sem credibilidade, incompetência, desonestos e movidos apenas pelo interesse pessoal, em detrimento de militantes com um percurso transparente, feito de fibra e luta pelo partido, não se agrava ainda mais a injustiça? É um desprezo claro por quem sempre esteve, de forma coerente e abnegada, ao serviço de um projeto político coletivo.
Mais grave ainda é a complacência dos próprios partidos. Aceitam e acolhem este tipo de indivíduos nas suas listas, como se nada estivesse em causa. Não será essa validação uma forma de desresponsabilização institucional?
Não estarão os órgãos internos, ao humilharem os militantes com percurso coerente e dedicação de anos, a abdicar de exigência ideológica, e da clareza devida ao eleitor?
E, ao fazê-lo, não comprometem a credibilidade do partido enquanto espaço de debate político e de compromisso coletivo?
A democracia representativa assenta num princípio fundamental: o da clareza na escolha política. Os cidadãos têm o direito de saber em quem votam, o que essa pessoa representa e a que projeto político fica vinculada. Candidatos que se dizem independentes, mas que se apresentam sob siglas partidárias, deturpam esse direito básico. Confundem, mistificam, desmobilizam. E alimentam o cansaço democrático que se expressa na abstenção, no voto em branco ou na adesão a soluções extremistas.
Não será tempo de enfrentar esta ambiguidade com seriedade?
Não se impõe a todos, candidatos e partidos, um compromisso mais transparente com os eleitores?
Não estará em causa, no fundo, a própria qualidade da democracia?
É compreensível que os partidos procurem alguns nomes “fora da política partidária” para alargar a sua base de apoio. É igualmente legítimo que cidadãos independentes desejem intervir na vida pública. Mas não se pode aceitar que se disfarce de independência aquilo que, na prática, é dependência conveniente. É proibido ao partido perder a sua identidade e a sua representatividade. Quem vai a votos é o partido.
Não há verdadeira independência quando se aceita o símbolo, os meios e a estrutura de um partido e, ao mesmo tempo, se nega qualquer responsabilidade política por esse vínculo.
Infelizmente, esta é uma prática cada vez mais frequente, sobre tudo no plano local. E depois admiram-se do desinteresse generalizado, do afastamento dos militantes e simpatizantes, da falta de envolvimento cívico e do crescimento de discursos populistas.
Quando a política se torna num jogo de aparências, quem perde é, inevitavelmente a democracia.