Manuel Igreja

Manuel Igreja

Os cafés

Hoje em dia já não há cafés como havia antigamente. Há pastelarias. Por certo, neste ponto desta coisa escrita, estarão vocês, senhores meus e senhoras minhas, a futurar que o meu em redor não entra pelos meus olhos adentro, pois não vejo que cafés há muitos, assim como os chapéus. Mas lá mais para baixo verão ao que de quero chegar.

Bem sei que os há pois não sou cego, mas não são a mesma coisa, venha quem vier. Perderam a essência ainda que estejam equipados com tudo o que há de melhor na arte de bem servir e de bem se tirar uma chávena de saboroso pó escuto, ou no encher de um copo de cerveja com branca espuma a transbordar.

No tempo em que os quotidianos eram muito mais em círculo e desenrolados em cada rua ou bairro a poucos metros da casa de cada qual, os cafés eram o centro, eram o largo, o ponto de encontro para dois dedos de conversa ora mais fiada, ora mais séria, eram terrenos de alfobres de ideias germinadas e de alegrias ou tristezas trocadas.

Estava uma pessoa no remanso do lar até dado momento, fazia o que havia a fazer e depois, saía. Sabia que indo ao habitual café, encontraria os conhecidos ou amigos do costume. Convivia, exibia-se, apreciava e era apreciado, criticava e era criticado. Os dias passavam, aparentemente iguais, mas só o eram no parecer, porque os anos deixam marcar nos rostos e sulcos nas almas.

Graças aos cafés, o sentido de pertença a uma comunidade era muito mais concreto e muito mais enraizado, por ser neles que era em boa parte granjeado e alimentado. Segmentados, os cafés espelhavam a forma de organização da sociedade envolvente. Conforme as competências e as apetências cada um frequentava o café com que mais se identificava, fazendo dele uma extensão do seu canto e da sua forma de vida.

Em volta das mesas dos cafés, congeminaram-se revoluções, desenvolveram-se ideologias e teorias, combinaram-se práticas e ações, tentou-se mudar o mundo não se sabendo que mesmo que ele mude, fica quase tudo na mesma só que de maneira diferente. Mas sonhava-se.

No entanto, nessa mudança, as coisas por debaixo da pele das urbes alteram-se. Os hábitos alteraram-se. Os espaços deram lugar a outras formas e a novos modos de ser e de estar. O largo entra-nos agora casa adentro sob a forma de teclas e de ecrãs. O mundo exterior vem instantaneamente ao encontro das pessoas em vez de serem as pessoas a irem ao seu encontro. Agora já ninguém é de ninguém a não ser de si próprio e quando muitos dos que lhe são mais próximos.

As urbes perderam o largo e infelizmente ganharam charcos. Virados para dentro e muito cheios de si, os cidadãos quase se não conhecem nem se sabem, cristalizados nos seus temores, nos seus anseios. Não vão à fonte comum beber a água que corre nas veias da humanidade. Por isso estamos mais débeis. Falta-nos a vitamina do convívio efetivo e afetivo. Reluzimos mais, mas sentimos menos.

A falta que nos fazem os cafés! Não dos de agora, mas dos outros, onde se podia pedir lume a alguém da mesa do lado, sem se ser olhado de soslaio, e onde se podia pagar mais logo o café tomado por não haver trocos, onde até se podia jogar bilhar, mais não fosse com as palavras que rolavam em cada conversa.

Como esta, que aqui deixo, neste ponto da coisa que finda com um ponto.


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