Manuel Igreja

Manuel Igreja

Encantamentos e Coisas Reais

- Caso eu lhe comece a falar em bruxas e em bruxedos, em lobisomens e outras coisas que tal, o mais certo é vossemecê pôr-se para aí com ar de quem pensa, mas não diz: - Está bem, está bem. Conversa fiada! Mas quede-se então um migalho se faz o favor e oiça o que lhe vou contar que não se vai arrepender nem um cibo e vai ver que nem sempre as coisas são como se julga assim à primeira.

Isto dizia o velho sentado no seu habitual poiso onde via quem passava e sentia o desfiar lento do tempo. O seu interlocutor, era um citadino e habitual forasteiro que de oras em quando assentava arrais na aldeia para retempero e ganho de novas forças para a labuta na selva urbana em que fazia pela vida.

- Não me vai dizer que acredita nessas coisas…

- Acreditar não acredito, mas que as há, lá isso há. Nunca ouviu dizer?

- Ouvi sim senhor. É até um dito espanhol.

- Seja lá de onde for. Mas que se aplica, lá isso aplica. Hoje já nem tanto pois as pessoas na atafona e na correria não veem nem sentem o que devem. Mas que há coisas…
- Pelo sim pelo não, o melhor é a gente respeitar.

- Então creia no que lhe conto: Vai há uns sessenta anos, a páginas tantas, desapareceu de casa dos pais uma criança de berço, um mocinho, sem que alguém tivesse visto fosse o que fosse. Repare, era de berço, não andava. Toda a gente se fartou de o procurar, escutam a ver se o ouviam, mas nada. Tinha levado sumiço o franganote. Roubo de criança era coisa que se não dava conta como hoje, mas a páginas tantas não havia outra explicação. Foi uma aflição. Mas então não é que às tantas algum foi dar com o petiz no meio de um soito ali para os lados da Poça Velha! Mas mais. Quando nisso, ouviram-nas umas vozes e uns risos: - Está aqui já apareceu. Eram as bruxas que tinham levado a gozar. É o que que digo. Ficou com o nome de Zé Perdido. Ainda por ainda anda.

- Vai desculpar, mas tem de haver outra explicação.

- Isso é o que diz vossemecê. Para o povo, não há outra. Lobisomens, bruxas com a forma de caldeiros velhos nas encruzilhadas, visões durante a noite de animais esquisitos e sei lá que mais, era o que não faltava. Ninguém se atrevia a passar um cruzamento pelo escuro. Posso garantir-lhe que não faltavam almas penadas que não conseguiam poiso e sossego lá no outro mundo e andavam por aí a atazanar. Metiam-se no corpo de alguém e era o cabo dos trabalhos. Ainda hoje não falta por aí que tenha poderes, morada aberta, e consiga falar com quem já cá não está. Não falta aldrabice nisso, mas que há coisa, isso há.

- Se quer que lhe diga, a mim custa-me a acreditar nessas coisas, ainda que reconheça que por vezes há coisas de espantar qualquer um. Mas acho que tudo isso, se devia em muito à ignorância e à miséria. Se calhar, em grande parte até, grande parte disso não passa de imaginação própria de delírio. As pessoas alimentavam-se mail, bebiam muito, e depois imaginavam coisas.

- Não digo que não tenha alguma razão. Aquilo eram tempos do arco da velha, como se costuma dizer. Ruins. Os pobres que eram quase todos, viviam muito mal. Lá isso é verdade. Olhe, ainda sou do tempo de se ir à Régua a pé comprar uma broa de pão, ou por exemplo levar umas couves que se trocavam por azeite. Lá em baixo, no Doiro, ainda era pior. Só havia vinho e azeite, e estava tudo nas mãos de alguns. A grande maioria ganhava o dia nas quintas, quando havia trabalho.

- Pelo menos aqui, mais cá para cima, meio Beira Alta meio Alto Douro, havia batatas, milho, centeio, trigo, pasto para o gado. Realmente parece que havia mais ao que se deitar a mão.

- Acabava por haver, mas nem por isso era muito melhor. Comia-se o pouco que a terra ia dando e pouco mais. Mas havia fome. Custava muito a vida. Ainda me lembro de uma ir uma mulher à Régua buscar uma canastra de sardinha à cabeça para vir vender aqui. Ia-se pelo caminho da senhora das Aveleiras, onde está ainda a capela, metia-se pela Ribanceira até Valdigem, e depois seguia-se pela estrada que ainda é a mesma até ao rio e à ponte.

- Por acaso tenho uma questão a pôr-lhe. O pessoal trabalhava quase todo nas casas dos proprietários maiores. Como era feito o processo? Pediam para ir trabalhar, eram rogados, ou como era?

- Normalmente ia-se dar o dia. Mas também se podia ir dar a manhã ou a tarde como se dizia antigamente. O pessoal colocava-se no Largo de Santo António, no centro da freguesia, e depois os proprietários escolhiam, este ou aquele. Quem fosse mais valente, que trabalhasse mais, estava mais garantido. Quem fizesse moina, nem era rogado. Ganhava má fama e nem conseguia casar. Qual era a mulher que queria um homem que não lhe dava garantia de ser capaz de sustentar a casa? Depois, olhe trabalhava-se de sol a sol, todo o dia. O comer era um quartilho de vinho e uma sardinha com uma côdea de pão. Isto, quando o inverno não impedia. Caso a páginas tantas do dia o mau tempo impedisse o trabalho, vinha-se para casa sem ganhar nada.

- Era uma injustiça.

- Pois era. Mas eram assim os tempos. Havia muito dificuldade, mas olhe que não faltava a alegria. Apesar de tudo, as pessoas também cantavam e bailavam. Seria uma maneira de espantar os males. Depois os padres lá se encarregavam de consolar as pessoas, com a promessa de um lugar no céu por mor dos padecimentos na terra. Por falar nisso, olhe, tivemos aí um não vai há muitos anos, o Padre Alberto, que lá nisso era bom. Era um homenzarrão, forte que nem um cavalo, com o devido respeito. Sabe o senhor o sino grande que está na torre? Só com um braço fazia-o dobrar. Não era para qualquer um.

- Também como padre, comeria bem melhor que a maioria dos paroquianos. Digo eu, não sei.

- Lá isso não afianço, pois nunca o via comer. Nunca me sentei na sua mesa la de casa. Mas não é difícil concluir que sim, pois o resto das pessoas, comiam o que a terra dava como acho que já disse. Mesmo os mais ricos. Bem, esses lá se consolariam mais vezes com um naco de presunto ou salpicão. Fora o que se colhia, conforme as posses de cada qual, lá se compravam umas necessidades ao azeiteiro de Tões, ou ao peixeiro de Valdigem que vinha de madrugada trazer um peixito. Ainda sou do tempo em que o azeiteiro andava por aí com uma carroça com coisas de mercearia. Depois passou a vir com uma carrinha. O Peixeiro vinha de mota com atrelado, um triciclo, e amanhecia já por aí a tocar numa corneta. Lá ia vendo meia dúzia de sardinha, um chicharro, um carapau..., quanto ao pão, malhava-se o trigo, e depois o moleiro de Alvelos levava-o para moer no moinho lá em baixo no rio Varosa. Depois vinha por aí vender a farinha. Havia um forno do povo que ia a leilão todos os anos para ser entregue à forneira. Quem tivesse farinha, ia lá cozer o pão para governo da casa. Depois houve uma padeira, a Lucília, que recebia pão da padaria e andava com ele à cabeça de casa em casa a vender….
- Nada mau…

- Mas tudo muito à remisga e poupadinho que a coisa não dava para mais, e mesmo se desse, comer, era só porque saco vazio tomba. A principal canseira, era poupar para se comprar um ou outro terreno. Erguer uma casa de bens era o maior sonho de qualquer um. Repare que não havia reformas na velhice e tinha de se amealhar.
- Contava-se com os filhos para ajudar. Ou não?

- Os que saíam de boa cepa ajudavam. Mas não faltava filho má rês e com maus fígados. Eram tempos em que os corações por via da brutidade também eram quase pedras.
- O isolamento era muito. Pouco se sabia do que se passava no resto do mundo. Em parte, também seria por isso….

- Sim quase não se passava para além de umas léguas em redor. Depois, rádios, haveria meia dúzia, e televisão uma ou duas quando inventaram essa cosia. Até o correio era raro. Vem-me à ideia nisso a Prazeres, que morava no meio do povo perto da capela de Santo António. Era ela que ia com uma burra a Fontelo buscar as cartas que vinham na carreira do Raia que ia da Régua a S. Cosmado. Quem quisesse mandar ou receber correio ia a casa dela. Que tempos!...

- Não sei se deu conta, mas começámos a falar em bruxas e coisas que tal e acabamos por desfiar lembranças reais.

- Pois foi. Realmente. Mas isto está tudo ligado. Nem se sabe bem onde começa o que se imagina ou inventa o que se vive. Antigamente eram tempos de aperto e de isolamento. O longe era dado pela cor azul do que se via lá ao fundo. Era onde acabava o mundo. Quem subisse à serra do Marão que daqui se enxerga, muito se espantaria com o mar de terra que de lá se avista.

- Qualquer deslocação de mais de duas horas de lonjura era uma aventura de quase dar a volta ao mundo…

- Ao mundo e à cabeça. Por falar nisso, vou-lhe contar um sucedido com o Manel da Luzia, acho que era seu avô: certo dia já de noite, vinha ele da vila montado na sua bonita égua e ali na Fraga da Pena apareceu-lhe uma bruxa que lhe espantou a animália. Estatelou-se e foi ao chão. O animal veio esbaforido para casa e ele veio a pé. Contava ele que assim foi e que a diaba era muito bonita. Reluzente até. Não sei. Mas olhe que ficou encantado e passava a vida a dizer que a ouvia cantar. Agora o que foi não sei. Seria alguma alma do tempo em que aqui havia uma cidade que foi destruída que andaria à procura de corpo para albergue. Quem sabe se será alguma dessas moças bonitas que por aí se veem. Diga lá vossemecê que é novo: uma ou outra bem lhe agradam. Não?

- Não direi que não.

- Pois então tenha o meu amigo cuidado com os encantamentos.


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