Manuel Igreja

Manuel Igreja

A Democracia não é um dado adquirido

Nas voltas e reviravoltas do nosso viver quotidiano, há coisas que se nos vão colando, ideias que se nos vão instalando, e a partir de certo momento sem dar por ela, certos conceitos e algumas realidades, são por nós tidas como quase naturais, fluídas automaticamente e sem retorno a outra forma.

Por exemplo, enquanto jovens saudáveis a vida parece-nos eterna e o sonho sem limites, grosso modo e felizmente no nosso contexto, a comida ora melhorada ora para remediar em cima da mesa é mais que certa, e o saber-se que senão vai preso desde que se não prevarique que baste, é inquestionável.

Com a Democracia e mais o ponto em que ela está, também assim nos sucede sem que a gente questione. Como sempre ainda que não da mesma maneira, ela resultou de um processo político que se desenrolou e alguém desenvencilhou para que em todas as madrugadas dos dias inteiros e limpos como escreveu uma das nossas maiores poetas, ela dê em flor no nosso jardim.

De início alguns podem ter estranhado, mas depois ela entranhou-se se não em todos, pelo menos felizmente na maioria de nós, cidadãos maiores de siso, de direitos e de obrigações. No seu germinar como em toda a parte, vacilou, recebeu objeções, mas ergueu-se e floriu viçosa e linda como somente o são as coisas grandes e belas nos Homens que dela cuidam e neles a cultivam.

No entanto e para mal dos nossos pecados, os tempos vão de perigo para ela, a Democracia, em qualquer parte deste nosso mundo moderno onde a muitas pessoas custa sair da era das cavernas obscuras por falta de luz e lampejo nas poucas arejadas mentalidades, onde pululam sombras, medos e ódios colados no pilar da intolerância.

Quando no globo muito mais que até agora existe quase tudo para dar certo e para que haja melhor equilibro e mais justiça nos modos de vida, assistimos impavidamente à chegada ao Poder de certos figurões que não passando de figuras gananciosas e torpes, logo se tornam em figuras com muito mando e pouco senso apesar da eficácia com que alcançam objectivos próprios, condenáveis e egoístas.

Com toda a pouca vergonha, não se coíbem de jurar que somente os move a vontade e o bem-querer do povo a quem fazem juras de amor eterno, mesmo sabendo que a gente sabe que somente os move a vontade predadora de enriquecimento pessoal esbatendo-se a clássica dicotomia entre a esquerda e a direita.

A falta de qualidade e a fraqueza de todos nós, porque sentimos o chão tremer, permite a ascensão ao poder democrático de personagens sem chama e sem rumo a médio prazo. A ausência de debate intelectual e de ponderação por não darmos tempo ao tempo, permite que despenteados mentais iludam muitos em cada vez mais países.

O mundo está num estado que se não recomenda, porque a Democracia mirra atacada pela praga da ignorância propagada pela compreensão lenta e pela estupidez acelerada, mas não queremos saber apresar de vermos, ouvirmos e lermos.

Qualquer dia poderá ser uma mera série de conceitos encafuados nos livros de História, caso sobrevivam as bibliotecas no admirável mundo novo onde não existem limites entre o real e o virtual, e onde o ser quase foi excluído em função do parecer num viver oco e sem trovas do vento que passa e sem que o sol entre pela vidraça por onde a alma espreita.

E então, o breu reinará durante algumas gerações. Depois…, não sei.


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