Manuel Igreja

Manuel Igreja

O Douro e a culpa que é sempre dos outros

Crise. Não há capítulo escrito acerca do Douro e de mais a sua história, em que não surja a palavra crise. Desde sempre. Aliás, foi devido a ela que no meado do século XVIII a região foi regulada e demarcada.

Os durienses da lavoura e alguns comerciantes do Porto, sentindo-se desprotegidos e prejudicados por falta de regras no sector, foram a Lisboa pedir proteção ao senhor marquês de Pombal, o homem que mandava em tudo.

Fino como o alho, este logo viu oportunidade de deitar mão ao negócio em causa que era de muita monta, para proveito do Poder Central e eventualmente de outros poderes partilhados e quem sabe se escusos.

Seja como for, as regras foram instituídas e implementadas sem dó nem piedade. No entanto, raros foram as décadas em que se não pronunciasse na terra do vinho fino a palavra crise. Em tempos de poderes centralizadores e fortes seria menor, mas demo-nos sempre pior com poderes mais liberais.

No decurso dos anos vinte do século passado a crise chegou a tal ponto que meia dúzia de paladinos se meteram ao trabalho de tentar unir os lavradores para que estes fossem capazes de se fazerem ouvir na capital visando proteção e medidas.

Eram poucos, mas bons, e conseguiram em 1932 fundar um organismo de classe chamado Casa do Douro. O regime do Estado Novo entendeu então delegar nele poderes de regulamentação e de fiscalização e delegou para o bem e para o mal.

Durante seis décadas, mais coisa menos coisa, a suposta associação de classe mais não foi do que mais um dos braços do Estado na região. Por isso foi mal-amada, com exceção da aproximação da época das vindimas, quando eram distribuídas as autorizações do quantitativo de uvas a serem elevadas à categoria de próprias para vinho do Porto.

Dizendo melhor, quando era distribuído o benefício com os respetivos cartões, tantas vezes transacionados ilegalmente mesmo à porta do majestático edifício sede do organismo regulador. Todos viam, todos sabiam, mas ninguém ligava ou liga.

Nesse, entretanto, a vida foi correndo razoavelmente bem, para não dizer mesmo muito bem. Foi o tempo do dinheiro fácil levado para junto do mar, num modo de vida cómodo, à verdadeira maneira dos proprietários oitocentistas. Ser proprietário era uma profissão de se coçar a barriga.

Graças ao escudo protetor, a crise, advinha , dizia-se, então do facto de os trabalhadores começarem a não se contentar com uma sardinha para seis, e a trabalhar por uma côdea de sol-a-sol ao frio ou à canícula.

Mas os tempos mudam. O centro do Poder mudou-se para Bruxelas, e de lá indicaram que não podia ser assim. O organismo que representava a Produção não podia ao mesmo tempo ser regulador por causa das condições de concorrência.

Como ninguém de Portugal quis ou soube referir que o vinho do Porto sendo único não concorre com nada, e que numa região onde cerca de trinta mil viticultores obrigatoriamente vendem os seus vinhos ou as suas uvas a meia dúzia de compradores tem de haver regulamentação firme e eficaz, a Casa do Douro foi esvaziada e escamoteada das receitas resultantes das funções.

Entrou em declínio por outras razões em parte, mas muito por via disso. O enorme edifício da rua dos Camilos, ficou que nem o Titanic a afundar-se enquanto todos bailavam e ninguém queria saber. O Alto Douro Vinhateiro pura e simplesmente esteve-se a borrifar.

O sector da Produção permitiu que a sua organização de classe, a mais rica do país, estivesse mais de vinte anos ao deus-dará, com uma Direção ilegal porque nem era eleita nos prazos regulamentares nem apresentava contas anuais como é de lei.

Num autêntico contexto de quem nem se governa nem se deixa governar, somente se clamava que alguém resolvesse, deitando-se permanentemente a culpa para essa entidade mítica que é o “eles”. Como para estes por sua vez, isto era o lado para que dormiam melhor, foi-se penando e andando.

Mas a páginas tantas lá ao longe o governo resolveu. Mal e atabalhoadamente decidiu implementar medidas de desbloqueio da situação que devia causar vergonha a todos porque revelava desleixo, inércia e falta de qualquer noção de união.

Fez-se a lei. Esta previa uma de duas soluções. Uma dizia que de dentro do Conselho Regional da Casa do Douro, sairiam indicados os novos órgãos sociais do organismo a criar. Outra, dizia que na impossibilidade daquela se implementasse a solução por via de um concurso público. Como foi impossível a primeira solução porque o Conselho não foi capaz de se reunir por falta de quórum, foi levado a efeito o concurso público.

Pouco ou nada adiantou. Afinal havia quem se interessasse. Nada tardou que se declarasse uma guerra de alecrim e manjerona com contornos a roçar a caricatura por parte de todos os oponentes. Foi-se para os tribunais.

Entendeu a dado momento o poder político chamar a si o assunto outra vez, e legislou para que as coisas voltem mais ou menos ao que eram aquando da anterior medida legislativa e aguardam-se as cenas dos próximos capítulos enquanto se refere a culpa que é dos outros.

Sucede por exemplo que havendo na região os dois únicos Institutos Públicos com receitas e autonomias próprias, o IVDP e o IPTM, o governo central entendeu retira-lhe ambas. Levou e leva o dinheiro obtido através da atividade exercida, mas a região não tugiu nem mugiu. Queixou-se levemente.

A culpa de tudo é sempre dos outros, enquanto por cá só se olha para o umbigo e se exibe o orgulho de se ter o melhor vinho e a mais bela paisagem do mundo. ~

Mas apesar de tudo o Douro move-se. O seu potencial é de tal ordem que levou a que nada seja como dantes. Passou a receber centenas de milhar de turistas de todos os cantos do mundo, evoluiu na oferta, nasceram hotéis do melhor e restaurantes de alto gabarito na estética e na comida. O Douro tornou-se cosmopolita.

O Douro chega ao fim da primeira vintena do século XX sendo referindo como um pequeno paraíso. A nós que o amamos estremece-nos a alma de cada vez que pisamos o seu chão. Sentimos orgulho.

No entanto, não podemos esquecer-nos que nem tudo o que reluz é ouro, e que existem realidades e caraterísticas que nos são próprias. Se calhar em relação a isso e em algumas não estamos bem. Não ficamos bem na fotografia.

Como pessoas inteligentes que somos, devemos corrigir e evitar certas poses. Não podemos é culpar ou a máquina ou o fotógrafo. Temos de estar à altura do Alto Douro para que não digam que ele é prodigioso apesar de nós.


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