Manuel Igreja

Manuel Igreja

O Douro, a crise e a lengalenga

Fiquem os meus fidalgos sabendo, como diria Aquilino, que desde que me conheço que ao Douro Vinhateiro vejo associada a palavra crise. É como se em livro que se lê página a página esteja impressa a palavra maldita cujo significar se não quer sentir, mas a que quase ninguém escapa.

Desde que o Douro tem no vinho um negócio e uma forma de vida que ela lhe anda associada. De resto, foi por mor dela que há mais de dois séculos e meio, um padre de nome João de Mansilha ali de Lobrigos, um lavrador com muitos bens ao luar de nome Beleza de Andrade, e uma delegação dos “homens bons” do Porto, se meteram nos tamancos e foram por aí abaixo até Lisboa para falar com o senhor Marquês.

A actividade vinícola no Alto Douro num repente tinha virado uma verdadeira galinha de ovos de ouro, mas só um punhado de figurões ficava com os muitos ganhos. Uns ficavam com a carne da perna enquanto aos outros restava rilhar uns ossitos que nem da assuã eram.
Fino quem nem o alho, ladino e centralista no que toca ao Poder, o senhor Marquês logo ali viu excelente oportunidade para controlar o negócio em proveito próprio e de parte do reino. Quase tudo o que sobrava na gaveta depois de pagas as contas, e era muito, serviu para fazer florir outros canteiros noutras regiões.

Enquanto isso por para cá do Marão, mourejava-se a bom mourejar, regava-se o xisto com o suor do rosto, mas a fome era de rato. Ao longo dos anos foram surgindo novos proprietários e houve muitas propriedades a mudar de mãos. No tempo da filoxera então foi um passa para cá que nem visto com as aflições de uns a ser chão de boas uvas para outros que foram tendo proveitos muito razoáveis e se foi acomodando e flauteando vida afora.

Não nos diz propriamente a História, mas diz-nos o conhecimento do que se viu, que a crise sempre medrou, mas não necessariamente para todos ou pelo menos de igual forma. A miséria campeou durante décadas e décadas para os que manobravam as enxadas em quotidianos alimentados com côdeas e quartilhos de vinho avinagrado.

Houve revoltas e houve mortes, mas pouco se mudou. No Alto Douro feito Metrópole da cidade grande junto ao mar por onde se embarcava o vinho, uns parasitavam acomodadamente, enquanto outros eram praticamente escravizados na construção da obra admirável e incomensurável num ajeitar da natureza que ainda hoje assombra o mundo.

Por outras bandas do mundo vinícola as coisas começaram a mudar como é próprio no mundo moderno, a função foi evoluindo, as pessoas e as empresas foram-se adaptando, mas no Douro continuou a sornice para não dizer outra coisa por respeito a vossemecês. Quando noutras regiões se procuravam novas soluções, por cá o problema maior era uma sardinha já não chegar para alimento de três bocas.

O Estado entregou as competências para que na região nos governássemos, assobiou para o lado, e pouco se preocupou porque apesar de tudo aqui nascia sossegadamente uma das maiores riquezas nacionais. Sem grandes preocupações o rendimento era garantido. Cada qual tinha no seu armazém guardado a sete chaves o melhor vinho do mundo, mas a palavra crise soltava-se de debaixo da língua a cada conversa trocada e desfiada.

Há coisa de uns trinta anos, mais coisa menos coisa, uma meia dúzia de afoitos, viu mais longe, tirou-se de cuidados, e lançou-se no engarrafamento e venda dos seus vinhos. Futuro eu que lhes correu bem e num repente foram imitados e copiados. A questão é que muitos se meteram muito à toa e com muita vaidade.

Agora torcem a orelha e não param de pedir que alguém com força de lei lhes acabe com a crise. Que a mando os preços dos vinhos subam. No entanto continuam cada um por si sem tamanho suficiente para colocação das vasilhas onde metem o sol engarrafado. É bom, mas não chega. Digo eu.

Pois para findar só digo a vossorias: - Organizem-se catano! Deixem a lengalenga da crise.


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