Ângela Bruce

Ângela Bruce

As nossas alcaparras!

Convém esclarecer que as alcaparras de que falo é o nome vulgarmente dado, em Trás-os-Montes, à azeitona partida sem carabunha. A azeitona é ripada, ainda verde, no final do mês de outubro e início de novembro, depois ao longo de alguns serões, esmaga-se, retira-se-lhe a carabunha e deixa-se em salmoura num processo de cura durante algumas semanas.

Portanto, as nossas alcaparras nada têm a ver com o arbusto “Capparis spinosa” que cresce na região do Mediterrâneo, cujo o seu fruto a “alcaparra”, tem vindo a ser usado na confeção de diversos pratos desde a antiga Grécia.

Não posso precisar quando as nossas gentes começaram a introduzir as nossas alcaparras à mesa mas posso contar-vos os serões que, sentada na tropeça, martelei, com alguma satisfação, cestas e baldes de azeitona.

            Nos curtos dias de outono, quando o escurecer chega a meio da tarde e a necessidade de acender o lume já se faz sentir, findado o dia de trabalho, no campo, havia as lides de casa. Ao serão rara era a noite que depois da ceia não houvesse que fazer! Entre rezar terços à sagrada família, dobar algodão, descascar bilhós, cortar e virar tripas com a colher de pau, faziam-se invariavelmente as alcaparras. Quando já estavam os potes a enxugar e a cozinha intermos, empeçava-se por se forrar o lar, com qualquer catcho de plástico que houvesse disponível que, está claro, se ia guardando de uns anos para os outros. Pois, a azeitona esmagada manchava os ladrilhos e não estou crente que houvesse escova que os voltasse a deixar escorreitos. A forradela estendia-se às pernas de quem martelava e só então, com tudo livre de manchas, se empeçava a tarefa que sempre se revelava trabalhosa e demorada!

 Da cesta ia retirando punhados infindáveis de azeitona que, mecanicamente esmagava com a ajuda do maço de madeira. Sentadas no escano e já de mãos pretas, a avó e a mãe separavam as carabunhas das alcaparras. Depois botavam-se num caçoulo onde se lhes juntava água fria e sal e, por fim, levavam-se à adega onde ficariam esquecidas, nesta salmoura, durante semanas. Voltavam à baila quando se precisavam à mesa ou na cesta da merenda!

 Retiravam-se algumas com a colher de pau, lavavam-se em várias águas e botavam-se no tatcho de esmalte em água fria para que não houvesse nem raças de sal e não se pusessem moles. Depois eram servidas das mais diversas maneiras. Na cesta da merenda seguiam ao lado dos ovos rijados na sertã, do bacalhau frito, das tchouriças de massa, das nozes, dos figos e da malga da marmelada. Em nossa casa eram regularmente acompanhadas por sardinhas em molho de tomate, cebola e azeite.

Lembro-me de uma história engraçada, por altura da descava das vinhas, que era feita religiosamente nas férias do Entrudo. À hora da merenda, tão sabiamente, os irmãos mais velhos me alertaram para os males que poderia vir a padecer, se por ventura comesse o salpicão. Segundo eles, era da língua e está claro quando ingerido por uma criança lhe transmitiria o dom da tagarelice para o resto do dia! Escusado será dizer que as alcaparras com sardinhas me pareceram uma melhor opção e que desse salpicão apenas me ficou esta memória!

            A verdade é que não há casa transmontana que não sirva esta iguaria durante todo o ano. Por aqui têm sido uma presença constante na mesa e pori fora, nos trabalhos do campo, acompanhadas com sardinhas ou simplesmente com azeite e cebola.

            Muitas são as receitas da cura das alcaparras. O certo é que cá em casa assim se faziam, ao serão, em frente ao lume cantarolando ou rezando intermináveis terços por bias das almas.


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