Ângela Bruce

Ângela Bruce

É dia de casulas!

Para quem é de por aí a baixo, casulas são feijões secos na vagem. O feijão é apanhado no final do Verão, quando já está completamente desenvolvido e deixa-se secar ao sol. Depois, só temos que esperar pelos dias frios de Inverno para os poder apreciar com um uns bons cibos de tchitcha!

Convém esclarecer que as espécies mais recentes de feijão (as que hoje em dia usamos para este prato) são de mais fácil confecção mas as mais antigas apresentam um fio fibroso ao longo da vagem sendo o tempo de cozedura mais demorado. Assim sendo, as nossas gentes confecionavam as casulas no pote de ferro, ao lume, onde coziam durante horas!

A nossa cultura gastronómica está estreitamente ligada aos trabalhos agrícolas da região e as casulas eram um prato ideal para os longos e frios dias de geiras no Inverno!

Em nossa casa era certinho fazerem parte do menu no dia de Entrudo!

É claro que não sei precisar quando começaram as nossas gentes a ter as casulas à mesa. Mas conto-vos, aquilo de que me lembro quando ainda garota ficava em casa com a minha avó e tratávamos do pote das casulas.

O cenário já estava montado! O lar varrido, um canhoto a servir de estrefugueiro e uns tições da noite anterior. O pote também já lá estava. Calhava-me, a mim, a tarefa de ir ó esqueiro buscar uma gabela de lenha para acender o lume.

 As casulas estavam, num alguidar, em cima do lava-louça com uns cibos de presunto uns pés e orelheira.

A avó não me deixava acender o lume embora eu insistisse com ela. Dizia-me sempre que eu gastava a caixa dos lumes inteira e que me enfuliçava toda. Acendíamos o lume com uma giesta bem seca e uma boa gabela de guiços. De seguida, lá encostávamos o pote à labareda já com a tchitcha dentro.

 Mal houvesse brasas era tempo para uma torrada de azeite ou de unto com uma malga de café para a avó e outra de leite para mim!

A cada trique a avó verificava o pote para ver se já fervia! Quando levantava fervura metíamos as casulas e umas cebolas junto com a tchitcha. Depois, tratava-se do lume para que o pote fervesse e as casulas não engrolassem. Cuidadosamente, ia-se chegando o pote atrás para que não fervesse a catchão.

Sentada no escano, a avó, partia para as malgas, finas fatias de centeio ou trigo e cobria-as com um rodelo! Seria mais tarde o nosso almoço!

O repertório de canções e de histórias da avó Maria, era vasto. De olhos arregalados no lume, ouvia com algum entusiasmo e ao mesmo tempo cagufo contas de almas penadas que apareciam a fulano e cicrano, a pedirem “padres nossos” ou então aqueles que desapareciam, no monte, comidos por lobos! Muitos foram os terços e missas e até novenas inteiras, que se mandaram rezar por bias dessas almas que teimavam em não deixar este mundo!

Sem nunca esquecer o lume e as casulas, com uma malga provava-se a água. –“Para ver se está boa de adubo” dizia ela”!

 

 Depois, quando o pote já se tinha fartado de ferver e os feijões estavam em meio cozer, a avó lançava as sopas. Servindo-se da colher do caldo, retirava do pote alguma daquela água e regava as fatias de pão que repousavam nas malgas.

Mais tarde, acrescentava-se o pote com mais água e verifica-se a cozedura das casulas.

Quando a tchitcha estava cozida tirava-se para um caçoulo e deixava-se no lar, para que não arrefecesse. As batatas, já descascadas e cortadas às catchas só se metiam no pote quando a hora da ceia se aproximava. Voltava a chegar-se o pote à frente, metiam-se as batatas e esperava-se até tudo ficar bem cozido! Ainda se cortavam duas ou três tchouriças do fumeiro e punham-se na grelha ao lume para assar!

Acompanhavam as casulas, na travessa de esmalte azul, os cibos de tchitcha e as alheiras! Com o prato bem regado de azeite, os adultos,  contavam peripécias do dia de trabalho! Falavam da carambina branca que cobria os montes e as oliveiras, logo pela manhã; da ingarela que o rio tinha levado; da pintcha carneira que o meu irmão tinha dado nas poldras do rio; das sacas de azeitona que tinham caído na ladeira porque a corda tinha ficado frouxa. Enfim, faziam-se planos para o dia segunte.

 A mesa era abandonada pelos homens e restava apenas a árdua tarefa de esfregar o pote que sempre nos deixava as mãos pretas de tão enfuliçado que estava!

A água que sobrava, de se terem escoado as casulas, guardava-se e seria no dia seguinte o almoço da minha avó! Caldo de casulas!

Verdade seja dita, em criança, não era prato que apreciava muito por bias dos fios, mormente aquele feijão que já se tinha colhido muito tarde, no final do Verão, e estava muito grado. Depois, por não ser um prato apelativo aos olhos de uma criança! Dizem os entendidos que devemos experimentar entre 10 a 12 vezes um alimento para decidirmos se gostamos ou não! Garanto-vos que estas 12 vezes foram multiplicadas por muitos dias de Inverno na minha infância e que hoje simplesmente adoro casulas!

Hoje em dia as casulas são um prato muito apreciado no país e até têm direito a festival. Mas, para nós que daqui somos a essência das casulas está no pote, ao lume, num dia de Inverno, em casa da avó, da mãe, da tia e nas conversas que tantas vezes nos levam de volta à infância.


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