Ângela Bruce

Ângela Bruce

O Azedo

Embarrados numa vara ó pé dos salpicões e das tchouriças de carne, que teimam em pingar os ladrilhos e a quem se aventura no motcho ou nas tropeças, aprumam-se os azedos com farda, para que não untem o fato de quem por baixo se senta. Alguns apresentam uma forma retilínea perfeita. Outros, devido à sua forma plissada, fazem-me lembrar as primeiras tentativas com a máquina de costura que, por muito que quisesse coser a direito, a costuradela sempre saía cheia de folhos. Depois, há ainda os que foi preciso botar-lhes um remendo porque se romperam na hora de os encher!

Para quem não está familiarizado com o fumeiro transmontano, passo a esclarecer que os azedos são tchouriços que, cá em casa, se fazem com a massa das alheiras à exceção do pimentão doce que não colocamos na sua composição.

O azedo é mais um excelente exemplo de como as nossas gentes nada desperdiçavam e que, de forma tão sábia, aproveitavam todos os recursos de que dispunham! Hoje em dia é possível produzir azedos em grande quantidade, já que há no mercado uma enorme variedade de tripas para os enchidos. No entanto, quando eu era criança eram utilizadas para o efeito as tripas mais largas do porco- entre as quais uma chamada o palaio- e, por serem em número reduzido e não haver facilidade de compra, faziam-se poucos azedos o que os tornava especiais.

O fumeiro exige muita preparação e os trabalhos das noites anteriores são infindáveis!

 A tarefa demanda que dias antes se impeçe a tratar das tripas. Lavando-as, atando-as e deixando-as de molho em aguardente, alho e limão!  Em criança, a noite anterior aos azedos e às alheiras, era-me atribuída a tarefa de esbulhar e picar os alhos, lavar as tripas, contar e recontar as bicas atadas! Os irmãos mais velhos tratavam de deixar, no lar, os potes grandes e uns bons canhotos pró lume.

Com a nabalha bem aguçada, a mãe rapava e lavava as courelas e já bem amanhadas juntava-as ao resto da tchitcha! Ao lado, já depenadas e bem tchamuscadas, estavam as pitas velhas, condição “sine qua non” para se fazer uma boa calda!

De touca improvisada e com o rodelo da louça a servir de avental, debruçada sob a caldeira das alheiras, a mana mais velha ajudava a mãe a cortar o pão de trigo em finas fatias. É claro que, o pão tinha sido cozido dias antes e se deixara no tendal até à hora de se partir! A azáfama do dia seguinte começava cedo e quando eu chegava à cozinha, já a mãe tinha feito mil e uma coisas! Com o lar repleto de potes, uns para cozer as carnes e outros para os rojões, não havia nem campo, nem tempo para grandes matabitchos, mas o que havia era a torradita feita ao lume, regada com azeite e com o cheiro dos sabores daquelas manhãs.

Finalmente, com as carnes cozidas e entre muitas sopradelas e queimaduras, ia-se picando e desfiando para um tratcho! Por esta altura, chegavam reforços que sem rogos provavam a calda e ditavam de sua sentença, retificavam-se os temperos e só então, se prosseguia amolecendo o trigo fatiado com a calda dos potes.

Depois juntava-se-lhe, ao pão, os alhos aferventados, as carnes, o azeite e o pingo e com o  colheroto envolviam-se cuidadosamente todos os ingredientes, obtendo assim uma massa esbranquiçada! Enchiam-se então, as tais tripas largas e plissadas, destinadas aos azedos. De seguida, lavavam-se em água bem quente e depois de decorridos eram embarrados nas varas do fumeiro, por cima do lar onde permaneciam durante semanas num processo de secagem.

 Para os degustar bastava esperar pelas férias do Entrudo, altura que religiosamente me eram entregues umas gantchas e na companhia dos irmãos mais velhos tratava-se da descava da vinha! Na verdade, eram férias aguardadas, com alguma ansiedade pois, apesar das gantchas viviam-se dias de muita diversão e folia pela aldeia! Eram os dias em que o Entrudo saía à rua e à noite, na eira, se serravam as velhas! Não esquecendo a ida à feira de Podence, onde se compravam as novidades e se viam os entrudos que, está claro teimavam em nos tchocalhar! Muitas foram as vezes que percorri o corredor da feira fugindo aos demónios mascarados sem lhes conseguir escapar!

Mas o susto rapidamente era esquecido quando depois à mesa, a mãe nos presenteava com um azedo fatiado, que previamente havia cozido e depois levara a tostar. Acompanhavam o azedo, grelos e batatas e bom azeite!

 Os conhecimentos das nossas gentes e o clima da região conferem ao azedo um paladar único e muito apreciado por qualquer transmontano!

Como em qualquer receita, podemos encontrar outras variações na composição deste enchido, mas cá em casa assim se faziam e se fazem os azedos que, continuam a deliciar-nos com os sabores das suas memórias!


Partilhar:

+ Crónicas

Os Milhos

Favas à antiga

Ouvi na escola falar

O Azedo

É dia de casulas!

As nossas alcaparras!