O que é que o Douro tem? Quase tudo, menos golfe e praia. Nem é preciso. Porque tem tudo para se tornar um destino perfeito, se se conseguir somar em vez de dividir, em benefício de uma imensa diversidade: paisagens superiores, um rio para navegar, património histórico e arqueológico, quintas onde se produzem bons vinhos e onde não chega o desassossego da civilização. E o melhor de tudo: as pessoas. Gente que gosta de conversar e de receber, sem artifícios. Estivemos uma semana no Douro e achámos pouco, muito pouco.

A mesma estrada em que arriscámos a pele, a EN 222, acabou por conduzir-nos às portas da Via Láctea, onde só os cometas abusam dos limites de velocidade. Para avistarmos o fio de estrelas outrora seguido pelos romeiros até Santiago de Compostela, com paragem nas terras abençoadas de Lamego, é preciso ver as muitas luzes do mundo a apagarem-se sob o amplexo da noite. Não é fácil consegui-lo, mas também por isso estamos no Douro. Mais precisamente na Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, uma propriedade setecentista do Cima Corgo, a meia hora de distância do Pinhão. Para aqui chegar, enfrentámos um engarrafamento de autocarros turísticos (bastam três veículos de grande porte para causar um tumulto no Pinhão) e percorremos uma estrada aos «esses» que se aconselha a fazer de dia e livre de influências etílicas. Para trás ficou a já citada EN 222, que apanhámos à entrada da Régua, num cruzamento manhoso com vista para o posto em ruínas da Junta Autónoma de Estradas. Não é coisa bonita de se ver. Tal como não é bonito ver o lixo a enfeitar as silvas nas encostas ribeirinhas ou as dezenas de carros estacionados em segunda fila, ao longo de uma via que tem tudo para ser – mas ainda não é – uma fabulosa rota panorâmica sobre o Douro.
Para já, aproveitamos a temperatura suave de uma noite de Verão, nem sempre possível face às amplitudes térmicas durienses. Comprada em 1999 pela família Amorim, recuperada e inaugurada em 2005, a Quinta Nova é um dos projectos ligados ao enoturismo que estão a propor o Alto Douro como um destino alternativo de férias ou de fim-de-semana. Fora das estradas mais percorridas, pareceu-nos o lugar perfeito para um interregno de descanso. Trocamos facilmente o acesso à internet por uma hora no alpendre com vista para as vinhas e o rio. Trocamos ainda mais facilmente a televisão por um estiramento nos sofás brancos junto aos ciprestes, sobretudo se estivermos acompanhados por um Vintage Porto da casa. Para os mais radicais, sugere-se uma partida de mikado (quem se lembra do mikado?) ou a leitura de um coffee table book, à disposição nas várias salas de estar, amplas e confortáveis.
Situada no meio de uma propriedade de 120 hectares, 85 dos quais de vinha, a Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo foi buscar o nome à padroeira da capela construída no século XVII, junto à margem do rio, numa zona onde os naufrágios eram frequentes. Por ali passa um dos três circuitos pedestres acessíveis a hóspedes e a visitantes. Não subestime as distâncias do mapa nem o declive do terreno. É preferível começar por um ponto alto como o Pomar Romano e descer até à capela; caso contrário, arrisca-se a naufragar de cansaço no meio do vinhedo e não haverá Senhora do Carmo que lhe acuda. Além dos passeios a pé ou de bicicleta (não são permitidos jipes à desgarrada), as propostas ligadas ao enoturismo incluem visita à adega, seguida de prova de vinhos do Porto e do Douro, com base nas três marcas aqui produzidas: Três Pomares, Grainha e Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo. Estão para breve os programas de um dia nas vindimas e, por 45 euros, pode trabalhar-se até à hora de almoço e gozar a boa vida no tempo restante.

A matriz das quintas do Douro
Nos últimos cinco anos, tem crescido a oferta de alojamento no Douro, em quantidade e qualidade. Os últimos dados tratados pelo Instituto Nacional de Estatística reportam a 2007 e referem mais de 228 mil dormidas anuais (contra 137 mil em 1997), 82 por cento protagonizadas por portugueses, seguindo-se os espanhóis, ingleses e franceses. Entretanto, a expansão dos cruzeiros fluviais, com a Douro Azul à cabeça, já elevou ligeiramente estes números. Israelitas e brasileiros fazem parte das novas nacionalidades em crescimento, mas o tempo médio de estada continua a ser escasso: cerca de um dia e meio. É pouco, quando há tanto para conhecer e experimentar.
O modelo das quintas, não sendo para todas as bolsas, é defendido por Ricardo Magalhães, chefe de projecto da Estrutura Missão Douro, como um pólo agregador do desenvolvimento turístico da região. A razão prende-se com o facto de estas serem «uma matriz identitária da paisagem vinhateira», com capacidade para representar uma oferta hoteleira que não classifica como «de elite», mas «qualificada». Calcula que existam cerca de sessenta quintas, contando com as associadas à Rota do Vinho do Porto, embora nem todas disponham de meios de alojamento ou estejam vocacionadas para o enoturismo. Um dos mais recentes empreendimentos, inaugurado em Maio, é a Quinta do Pégo, propriedade de uma família dinamarquesa investida na importação e comercialização de vinhos de todo o mundo. Rodeiam-na trinta hectares de vinha em bordadura (com os socalcos separados por oliveiras), mas a produção de vinho e de azeite não é feita ali. Alcandorada numa encosta a 138 metros de altitude, com a melhor vista sobre o rio que nos foi dada a ver, transformou-se num hotel de quatro estrelas com dez quartos, sendo maioritariamente procurada por estrangeiros.
Outro conceito de alojamento diferente das quintas, mas igualmente apostado na qualidade global, é a Casa de Gouvães, a quatro quilómetros do Pinhão. Ideal para famílias ou grupos de amigos (acolhe entre seis e nove pessoas), chega-se lá por uma estrada secundária de vistas largas que sobe serra acima, e não é caminho para agradar ao turista japonês. À saída do Pinhão, certifique-se apenas de que vai na direcção de Sabrosa e não de Alijó/Favaios. Plantada na bifurcação, existe uma linda magnólia cujos ramos cresceram até cobrir as placas indicativas. Talvez seja uma estratégia da autarquia para nos obrigar a sair do carro e observar de perto as árvores, tão maltratadas andam por esse país fora.
A «questão da má sinalética» seria um palavrão recorrente ao longo da semana, reunindo consenso entre quem se sente prejudicado por não estar visível e quem pretende chegar ao seu destino. Segundo um estudo do CED – Centro Mundial de Excelência de Destinos, ligado à Organização Mundial de Turismo, a sinalização é um dos pontos negros do Douro, a juntar ao lixo disperso na paisagem e à desintegração da identidade das aldeias. Não por acaso, alguns quilómetros depois, iremos encontrar Francisco Abrunhosa literalmente às voltas com o sinal que indica o caminho para Provesende. O tubo metálico não aderiu ao cimento, ou vice-versa, e digamos que Provesende está agora entregue à sorte, acomodando-se aos pontos cardeais conforme lhe dá o vento. «Isto é o suficiente para perder mais umas dezenas de visitantes ao fim-de-semana», diz, tentando virar a placa para o sítio certo.

De Gouvães a Provesende
Francisco Abrunhosa, primo do músico com o mesmo apelido, é responsável pela gestão da Casa de Gouvães e mais do que isso. Em 2006, topou com uma ruína na aldeia de Gouvães do Douro e logo ali acreditou no «tremendo potencial» que tinha à sua frente. É preciso ver as fotografias iniciais para perceber que estamos perante um homem de fé. Durante mais de um ano, veio do Porto para acompanhar a equipa encarregada da reconstrução, que de vez em quando lá volta para mostrar a outros a obra feita. A recuperação do património edificado é um dos motivos por que está no Douro: «Queria deixar aqui alguma coisa que perdurasse no tempo.»
Obteve investimento financeiro junto de um casal francês residente em Macau e entregou o projecto a um arquitecto de Vila Real, Vivaldo Carrilho da Fonseca. Assim nasceu uma casa de campo disposta em socalcos, na confluência da traça rural com as linhas e os atractivos contemporâneos. Distinta, sem chegar a ser luxuosa, não lhe faltam comodidades como o sistema Hi-Fi, DVD e SportTV, sendo também notório o culto dos pormenores. Do périplo pelas lojas e feiras de antiguidades e velharias, Francisco Abrunhosa trouxe objectos que agora merecem honras de exposição. Na parede, em molduras envidraçadas, há envelopes de antigas casas comerciais: Thiago Augusto Alberto de Almeida, «especialidades em enchidos e paio do lombo»; Amorim, Coelho & Feio, Lda., «todos os artigos de confeitaria». Uma delícia.
Assistida por uma governanta incansável, que tem a seu cargo os pequenos-almoços e outras refeições a pedido, o que falta à Casa de Gouvães é reconhecido pelo seu mentor: «O Douro precisa de um alojamento de qualidade, não massificado, que providencie um conjunto de serviços além da simples dormida. Eu não tenho estrutura para muito mais, mas estou preocupado com os meus hóspedes. Enviei muitos e-mails e cartas a entidades da região que fazem animação turística e não me responderam.» Uma das quintas, que prefere não nomear, deu-lhe como troco a lista de vinhos à disposição para venda ao público. «Falta atitude e consideração», sublinha, «e é também por causa de respostas deste género que o Douro tem um problema sério de divulgação.» De vez em quando, sente o voto de desconfiança lançado a quem vem de fora, «uma característica marcante do transmontano». A juntar ao «individualismo português», tem como resultado o que está à vista: uma falta de informação articulada que desorienta o turista e concorre para o desperdício de recursos a todos os níveis.
Um atalho leva-nos de Gouvães a Provesende, aldeia histórica que atingiu o apogeu no século XVIII e mantém até hoje um grande número de casas brasonadas. Os fundos da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte serviram para uma operação de requalificação nas ruas e nas fachadas dos edifícios, mas há fios eléctricos a irromper das paredes e varandas em granito polido que desfiguram o conjunto. Os acabamentos irão alguma vez ser acabados? De Provesende, regressaremos ao Pinhão com os enchidos das Papas Zaide em boa memória: o presunto, o salpicão raiado, a carne de porco curada e fumada… Por ser domingo, não havia pão fresco na Padaria Fátima, casa de 1940 onde existe, contam-nos, o maior forno de lenha do concelho de Sabrosa e do distrito de Vila Real. Também por ser domingo, estava fechado o posto de turismo, um problema nacional, exemplo típico de como a lógica institucional funciona ao contrário das vulgares expectativas de um cidadão em férias.

Aldeias nem sempre em festa
Provesende, Barcos, Favaios, Salzedas, Trevões, Ucanha. O portal das Aldeias Vinhateiras do Douro continua online, mas as notícias do festival que há dois anos animou as seis terras integrantes do projecto não tiveram continuidade. Talvez este ano regresse, se não faltarem os fundos comunitários. Na Ucanha, onde chegámos depois de cruzado o rio para a margem esquerda, há quem se lembre bem da festa que trouxe dança e artes circenses às ruas, puxando o brio da população, logo ali animada para mostrar o seu melhor. No caso de Maria Adelaide Costa, a Adelaidinha, são doces, geleias e compotas que dantes se diziam «caseiros» e hoje são «biológicos». Uma montra onde cabem o sabugueiro, o medronho, a maçã bravo-de-esmolfe, o pêssego, o damasco, a pêra, a laranja e outros frutos retirados aos seus pomares. Vende saquinhos de pano e de serapilheira, e também chás e infusões para vários males: oliveira para a hipertensão, hortelã-mouriscada para as dores de cabeça, carqueja para digestão e para o arroz de coelho, que uma coisa até ajuda a outra.
Adelaide Costa é uma mulher de armas. Casou-se ainda aos 16 e enviuvou dez anos depois de um homem que «foi um pai, um amigo e uma paixão». Não é preciso mais nada para se ser feliz e nada foi com o que ficou, exceptuando duas filhas pequenas, entregues a um colégio no Porto antes de emigrar para França. Aprendeu francês «com os olhos», quando a patroa abria os armários e lhe soletrava o nome das coisas. Lembra-se daquela vez em que lhe pediu arroz para o jantar, e ela, aflita, sem saber o que era «o ri, o ri», pensou que a patroa queria vê-la a rir-se, vá lá perceber-se porquê. De volta a Portugal, sobreviveu a um segundo marido e a uma doença cancerosa, e então pôs-se a fazer doces como terapia. Aos 65 anos, reformada, afirma: «Não estou aqui para ganhar para comer, estou aqui por causa da minha doença. Gostava de morrer e ver que as pessoas se deitassem a fazer qualquer coisa, como eu fiz. A vida agora está melhor para uns e pior para outros, mas as pessoas queixam-se na mesma.»
As casas recuperadas da rua mais íngreme da Ucanha, cores garridas e paredes de lousa em escamas, escondem uma pobreza envergonhada. Não há muito para fazer, aqui, e o recurso voltou a ser emigrar, como aconteceu com Arlete, de quem nos falhou a nota do apelido. Mas é fácil encontrá-la: até Novembro, Arlete, 21 anos, corpo de 15, divide-se entre o posto de turismo e as visitas guiadas à Torre de Ucanha, ex-líbris da terra, juntamente com a ponte dos séculos XII/XV. É um emprego de férias, findo o qual regressará a Davos, na Suíça, onde trabalha em hotelaria. Claro que gostaria de estudar História, mas onde iria arranjar emprego? A avaliar pelo estado da torre, aparentemente bem conservada, mas com o interior ao abandono e preenchido por um arremedo de espólio etnográfico que se confunde com lixo, parece que ninguém se importa muito com a dignidade de um conjunto classificado como Monumento Nacional.

Na Rotas das Vinhas de Cister
Da margem direita para a margem esquerda do Douro, atravessando o viaduto de betão da A24 em direcção de Lamego, a mudança na paisagem é quase abrupta. Os planaltos xistosos trabalhados pela mão do homem, onde impera a geometria das vinhas em socalcos, patamares ou ao alto, dão lugar a terras mais húmidas e mais elevadas, férteis em pomares, soutos e árvores de folha persistente. Nestes vales assentaram os monges de Cister, impulsionadores do desenvolvimento da região desde o século XII. Dão nome à rota dos vinhos que se distingue pelos seus brancos frescos e espumantes, com as Caves da Murganheira entre as maiores atracções locais.
Em matéria de património há também muito para ver: o Convento de São Pedro das Águas, em Tabuaço; as igrejas matrizes de Tarouca e Armamar; os mosteiros de Salzedas e de São João de Tarouca; o castelo, a sé e o Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego. São alguns dos lugares recomendados por Ana Maria Pinto Ribeiro, sempre que algum hóspede da Casa de Santo António de Britiande solicita informação. «Entre Lamego e Penedono há uma concentração notável de património religioso, militar e civil», salienta, lembrando os problemas de conservação «gravíssimos» que atingem sobretudo os mosteiros: «Há aqui duas tutelas que nem sempre estão de acordo, a igreja e o Instituto Português do Património Arquitectónico. E depois há os pequenos poderes locais, que são poderosíssimos e estão cristalizados há muito tempo.» Mantendo o olhar crítico, deixa transparecer o optimismo: «Apesar de todas as diferenças que existem nas várias regiões do Douro, estamos ligados por uma cultura de base. Há muito trabalho a fazer, mas já começámos, com esta reorganização das regiões de turismo.»
A Casa de Santo António de Britiande enquadra-se noutra categoria de alojamento também alinhada com a identidade histórica do Douro: o turismo de habitação. «As pessoas são recebidas pelos donos da casa, essa é a marca. E têm também a oportunidade de obter informações sobre a região que não existem noutro tipo de alojamento massificado.» Numa casa de fachada quinhentista, cuja frescura se mantém com a ajuda da vinha virgem que cobre as paredes, existem quatro quartos decorados com bom gosto, combinando elementos tradicionais portugueses e um certo aconchego very british. São exclusivos para casais. Ana Maria Pinto Ribeiro leva a sério «o conceito de tranquilidade total» e encaminha as famílias com filhos para duas suites espaçosas exteriores à casa, perto da piscina onde se serve o pequeno-almoço no Verão. Desde os jardins relvados com árvores frondosas até à zona de pomares, não falta espaço para brincadeiras – haja pais disponíveis e crianças ainda não viciadas em jogos electrónicos.
A cerca de dez minutos da Casa de Santo António de Britiande fica a Casa dos Viscondes da Várzea. Foi outro tanto para atravessar um dos caminhos da propriedade de 180 hectares, findo o qual deparámos com uma alameda de cedros e castanheiros imponentes. Também imponente é a mansão senhorial convertida em hotel rural com «muitos quartos», certamente dos maiores na região. «Muitos quartos», desculpe o leitor a imprecisão, é tudo o que podemos adiantar. A informação não está disponível na internet e não tivemos tempo de inquirir a proprietária, Maria Manuel Cyrne, que apressou o fim da entrevista ainda mal tínhamos começado. Aparentemente, não gosta de ser questionada sobre um conceito que poderíamos chamar de «hotel rural comercial», dada a profusão de objectos decorativos para venda. Nada contra, mas perguntar faz parte da profissão. Registámos uma das suas frases mais simpáticas: «Se querem minimalismos, vão ao Aquapura.» Foi o que acabámos por fazer.

Novos enólogos e produtores
Uma paragem em Lamego para comprar a famosa bola recheada levou-nos até à Sé Gourmet, loja de gastronomia, vinhos e artesanato de João Rebelo. Professor de Microeconomia e Econometria na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, fala-nos da «revolução silenciosa» ocorrida no Douro, com a reconversão tecnológica das estruturas de produção da vinha e a chegada de uma nova geração de enólogos. «A universidade teve aqui um papel determinante, a partir do momento em que surgiu o curso de Enologia, a única licenciatura do país nesta área.» Outra instituição que está a contribuir para o crescimento da formação qualificada é a Escola de Hotelaria e Turismo de Lamego. Contudo, para João Rebelo, «o turismo não é solução para tudo» nem chega para erradicar dois problemas sociais que aqui se fazem sentir com acuidade: a distribuição assimétrica dos rendimentos e a perda das populações rurais.
De volta à margem direita, perto da Régua, encontramos na Quinta do Vallado, um exemplo do esforço de modernização referido por João Rebelo. Uma das mais antigas quintas durienses, construída no início do século XVIII, o Vallado passou mais tarde para as mãos de Dona Antónia Adelaide Ferreira e mantém-se ainda na posse da família, indo na sexta geração de descendentes. Francisco Olazabal, o enólogo responsável pelos premiados vinhos de mesa brancos e tintos, e ainda dois vinhos do Porto tawnies, trouxe para aqui o conhecimento científico adquirido na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Quando a nova adega e cave estiverem prontas, entre Setembro e Outubro próximos, a capacidade da produção vinícola deverá duplicar. No Verão de 2010, espera-se também ver aumentada a capacidade de alojamento, com mais oito quartos e áreas comuns. Até lá, ainda que as obras possam diminuir temporariamente a capacidade logística, continuam a proporcionar-se provas com tábuas de queijos ou enchidos; piqueniques dentro da quinta; refeições para grupos com marcação prévia e outras actividades ligadas ao enoturismo.
Francisco Spratley Ferreira e João Ferreira Álvares Ribeiro integram os Douro Boys, um grupo informal de enólogos e proprietários de seis quintas, apostados em promover os seus rótulos sem vinculações institucionais ou políticas. São também eles os gerentes e anfitriões de uma casa que, sem luxos nem cerimónias, cultiva a arte de bem receber. Parte do mérito cabe às cozinheiras, cujo anonimato não impede aqui a lembrança de uma deliciosa sopa de tomate directamente remetida para a nossa «memória gustativa», como diria o chef Rui Paula. A verdade é que, apesar de tanto se ouvir o chavão «no Norte é que se come bem», não é fácil para o turista incauto descobrir restaurantes de nível intermédio onde se pratique uma cozinha à altura dos pergaminhos da região. Entre a excelência de um DOC e o entrecosto carbonizado que nos calhou num restaurante do Pinhão, a via do meio tem de ser encontrada. Mesmo que tenha de passar pela EN 222.

O estranho caso dos viscondes da Várzea
Maria Manuel Cyrne é senhora de uma personalidade forte e determinada, graças à qual foi mãe aos 50 anos e recuperou a propriedade arruinada da família. Tudo isto e muito mais ficámos a saber mal cruzámos a soleira da porta, nos dez minutos mais animados a que tivemos direito nesta reportagem. A partir do jantar, caímos em desgraça. À nossa hesitação perante a mesa posta no pior canto da varanda, onde acabámos por ficar na companhia dos mosquitos e outra bicharada nocturna, responderam-nos que tinha sido preparada «com muito carinho». Acontece que um hóspede não precisa de «carinho», para isso tem a família e os amigos. Precisa, isso sim, de profissionalismo, discrição e gentileza. Precisa que lhe perguntem se prefere ou não jantar ao ar livre. E que isso não seja comentado desde a recepção até à cozinha, e muito menos interpretado como uma ofensa pessoal.
Mas a Casa dos Viscondes da Várzea é um hotel rural que é uma casa particular que é uma loja de decoração, e desta mistura de conceitos surgem mal-entendidos. Quase não há móvel ou bibelot que não esteja à venda; os preços estão marcados por baixo e nem a mesa do pequeno-almoço é sagrada. Quando perguntamos a Maria Manuel Cyrne se a todos os hóspedes tem agradado esta ideia, a resposta sai lapidar e ofendida: «Toda a gente adora! Nunca ninguém se queixou.» Não é verdade. Ainda no dia anterior a secretária nos falara de um senhor que saiu a reclamar, argumentando que esperava uma coisa e lhe saíra outra. «Era um louco!» Então porquê? «Entrou aqui de chapéu! Já viu o que é alguém entrar em sua casa de chapéu?» Está explicada a confusão. Nem vamos falar do jacuzzi avariado, das teias de aranha no quarto e dos dejectos caninos à porta. Fique o leitor avisado: comporte-se como convidado, não reclame, faça muita cerimónia e trate logo de contar a sua vidinha. Se possível, arranje um desgosto de amor ou uma história de faca e alguidar. Apostamos que será muito bem recebido.

Um pódio para três
Entre os últimos projectos privados que estão a contribuir para a renovação do Douro encontram-se o Aquapura Douro Valley, o restaurante DOC e a Quinta do Seixo. Foram os três vencedores ex aequo dos prémios do Turismo de Portugal, atribuídos na última Bolsa de Turismo de Lisboa. Antiga mansão ligada à Quinta da Pacheca, o Aquapura Douro Valley mantém a arquitectura exterior e integrou novos edifícios sem prejudicar o conjunto. Os interiores, entre a sobriedade escandinava e um certo exotismo oriental, não poderiam ser mais contrastantes. Insere-se num conceito de hotelaria de luxo em que o spa é a grande mais-valia, estando acessível a hóspedes e ao público em geral, tal como o restaurante. Nesta matéria, o DOC continua a ser o trunfo imbatível da região, conciliando uma cozinha de inspiração regional com a visão de autor do chef Rui Paula, à frente de uma equipa jovem que surpreende pela descontracção. Desde o DOC, ir à Folgosa passou a ser um capricho com justificação óbvia. Mais perto do Pinhão, e ainda na famigerada EN 222, encontra-se a Quinta do Seixo, propriedade da empresa líder do mercado nacional de vinhos do Porto, a Sogrape. Ao contrário do que o nome possa sugerir, não se trata de alojamento em espaço rural, mas de um projecto de enoturismo contemporâneo e estilizado. Não espere ver aqui barris empoeirados ou pisos de terra batida. Durante as vindimas, a visita guiada conduz aos lagares em actividade, antes de terminar numa sala de provas que é um autêntico belvedere sobre o Douro. O portfólio dos vinhos do Porto Sandeman, para prova ou compra, está amplamente representado.

Rui Paula, o coração à boca
«Os fumeiros, o azeite, as carnes, os milhos, os legumes da época. O que o Douro tem de melhor, eu aproveito.» Para Rui Paula, chefe do restaurante DOC, tudo que vai à mesa «tem de ser bom», no sentido mais amplo e quase filosófico do termo. O apuro estético de cada prato conjuga-se com uma ética do paladar que aspira ao que é honesto e verdadeiro. A cozinha da avó serve-lhe até hoje de referência. Da mais singela erva do monte até ao azeite de trufa branca, tudo tem de encontrar o seu lugar num arquivo estudado com os cinco sentidos. «Apesar de haver sabores que já não consigo recuperar – os da salgadeira da minha avó, por exemplo –, baseio-me sempre na minha memória gustativa.» Mais: «Não acredito em cozinheiro nenhum do mundo, seja ele quem for, que não saiba fazer as receitas tradicionais do seu país. Cozido à portuguesa, arroz de feijão com pataniscas, um cabrito assado – quem não souber fazer isso, não pode elaborar mais nada.» Depois do Cepa Torta e do DOC, «e agora que o Douro está a dar os primeiros passos», como reconhece, Rui Paula prepara-se para abrir um novo restaurante no Porto, cidade onde nasceu, em 1967. Chamar-se-á DOP. Esperem por Fevereiro de 2010. Pacientemente.

Comboio histórico ou regional?
Pela paisagem, não há dúvida: melhor será eleger o comboio regional que faz várias vezes por dia o percurso de ida e volta da Régua ao Pocinho, a última das estações da linha do Douro. Paga 11 euros e tem direito a carruagens desconfortáveis e pouco limpas, que podem ir apinhadas de turistas regressados dos cruzeiros. Pela experiência, também não há dúvida: o comboio histórico é único. Sai aos sábados à tarde, de Maio a Outubro, e vai da Régua ao Tua, com paragem de vinte minutos no Pinhão, para fazer compras na Wine House. Locomotiva a vapor, muito fumo, bancos de madeira, música tradicional, muito fumo, um chisco de bola de carne e um fundo de vinho do Porto no copo. Muito fumo. Ida e volta, a viagem demora duas horas e vinte minutos. Por 42 euros por pessoa, a CP podia oferecer melhor.

Reorganização do Turismo do Douro
Responsável pela promoção turística de 19 municípios, de Mesão Frio a Freixo de Espada à Cinta, António Martinho preside, desde Janeiro de 2009, ao que era antes uma incompreensível manta de retalhos. Com a reorganização iniciada em 2008, o Turismo do Douro é hoje «o resultado da junção de duas ex-regiões de turismo, Douro Sul e Serra do Marão, da Junta de Turismo de Caldas de Moledo e ainda de três municípios da região do Nordeste Transmontano. Agregou-se a estes o município de Foz Côa, que não integrava nenhuma região de turismo, infelizmente, e por isso a dinâmica à volta das gravuras nunca se consolidou». António Marinho ainda não teve tempo de pôr em prática um plano de marketing capaz de produzir os folhetos e mapas que rareiam em todo o lado, mas considera uma vitória a abertura dos postos de turismo aos domingos em Vila Real, Régua e Lamego. Como prioridades, refere a sinalização e a reconversão da EN 222 em estrada panorâmica, dois estudos adjudicados pela Estrutura Missão Douro em fase de conclusão. Até ao final do mandato, em 2013, quer atingir o objectivo de trazer ao Douro meio milhão de dormidas anuais, o dobro da cifra actual. Para muito breve, entre 9 e 13 de Setembro, prepara-se o primeiro festival de cinema internacional, Douro Film Harvest (www.dourofilmharvest.com), que terá lugar em Vila Real, Lamego, Moncorvo e Santa Marta de Penaguião. «Estamos a pensar levar depois os filmes vencedores a outras localidades, preparando o festival seguinte», afirma. «Se a população é rarefeita, não podemos esperar muita gente, mas é bom que as pessoas de cá tenham qualidade de vida e acesso à cultura. Os públicos fazem-se.»

LEITURAS PARA MERGULHAR NO DOURO

Douro, de António Barreto, Edições Inapa, 1993
«É talvez a região portuguesa sobre a qual mais se escreveu, sobretudo no século XIX e princípios do actual», diz o autor, ainda na badana da obra. Publicado em 1993, continua a ser um livro de cabeceira para quem queira começar a entender o Douro – o rio, a região, a história, as pessoas, os trabalhos, as localidades. As fotografias vintage de Alvão e Emílio Biel juntam-se às imagens contemporâneas de Maurício Abreu, algumas já impregnadas de uma nostalgia prematura.

Rui Paula – Uma Cozinha no Douro, QuidNovi, 2009
Eis o recente vencedor do prémio para melhor primeira obra de gastronomia dos Gourmand World Cookbook Awards, a que concorreram mais de seis mil livros. As fotografias de Nelson Garrido valeram-lhe também o terceiro prémio na categoria de melhor fotografia. Com textos de Celeste Pereira, termina com as receitas do chef Rui Paula.

Guia de Museus do Douro, Fundação Museu do Douro, 2009
Um guia indispensável para calcorrear as três sub-regiões do Alto Douro – Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior – em busca da sua unidade sociocultural. Não ficam de fora lugares como a Adega das Giestas Negras, uma adega de xisto do fim da Idade Média, perto da Régua, ou o Museu das Curiosidades, em Romeu.

Barca Velha – Histórias de Um Vinho, de Ana Sofia Fonseca, Dom Quixote, 2004
Porque numa reportagem é raro caber tudo o que se quer contar, há quem prolongue a escrita em livro, num namoro sedutor entre o jornalismo e a literatura. Com prefácio de Francisco José Viegas, aqui se contam «as histórias da História do Barca Velha, o tinto português de excepção» que teve origem nas terras da Ferreirinha.

Pelas Linhas da Nostalgia, de Rui Cardoso e Mafalda César Machado, Afrontamento, 2008
Sem perder de vista as linhas férreas abandonadas, sugerem-se dezenas de itinerários a pé, para quem nem tudo se deixe perder. Tâmega, Corgo, Tua, Sabor, Barca d’Alva. E outros daí em diante, para sul, sempre a dizer adeus ao comboio.

Barão de Forrester – Razão e Sentimento, Fundação Museu do Douro, 2008
Joseph James Forrester, inglês de ascendência escocesa, não se limitou a enriquecer com o vinho. Quis ser um conhecedor engagé da região, registando-a em mapas, pinturas e fotografias. O Museu do Douro fez dele a figura inaugural do seu programa e registou o estudo num catálogo aprofundado. Para breve, idêntico trabalho será feito sobre Antónia Adelaide Ferreira (?) e o marquês de Pombal.



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Senhora da Ribeira com o Douro aos pés

Zeive não se revê na aldeia preservada