Chrys Chrystello

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Nova guerra, valeu a pena viver para isto?

NOVA GUERRA, VALEU A PENA VIVER PARA ISTO? 15.3.2022

EM 2015 repeti um escrito dos anos 70: Quanto a guerras determino que em vez de mandarmos a juventude para a guerra devemos estabelecer normas de duelo entre os políticos dos países beligerantes, podendo estes escolher as armas, sejam elas luta livre, corpo-a-corpo ou xadrez…

E transcrevo adiante vários excertos dos livros “ChrónicAçores, uma circum-navegação” nos últimos vinte anos…

Fosse eu crente e estaria a dar graças a deus, a alá ou à mãe-natureza por estar vivo. Com efeito, nunca me canso de agradecer não ter nascido no Afeganistão, na Coreia do Norte, na Nigéria, no Mali, no Paquistão, Bangladeche, Irian Jaya (Papua Ocidental sob ocupação indonésia desde 1962), no Iémen, Iraque, Irão, na Caxemira, na ainda ilegal República Sarauí, Chade, República Democrática do Congo, República Centro-Africana, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Ruanda, Burundi, Quénia, Uganda, Somália, Etiópia, Eritreia, Sudão, Líbia, Síria, Egito, Camboja, Birmânia (Myanmar), Chechénia, na maioria dos países da América Central, Latina ou da América do Sul, México, Albânia, Hungria, países balcânicos, países da ex-União Soviética, Ucrânia, Crimeia e países em “tão” (Turquemenistão, Tajiquistão, etc.) atualmente em guerra declarada ou não….

São tantos e tão diversos, uns em guerras recentes, outros há décadas, sem paz nem futuro nem presente e eu aqui nos Açores a queixar-me de quê?

Escapei às atrocidades da 2ª grande guerra por ainda não ter nascido mas vivi dias negros: uma brutal Guerra da Coreia, o fim da Primavera de Praga, o esmagar do sonho democrático da Hungria, os assassinatos dos Kennedy (JFK 1963 e Robert 1968) e o de Martin Luther King (1968), o genocídio do Biafra, a guerra do Vietname, a guerra colonial, o ciclone Tracy em Darwin (24 dezº 1974), a destituição (1975) do governo democraticamente eleito de Gough Whitlam na Austrália pelo governador-geral a mando da CIA, a invasão de Timor pela Indonésia em 7/12/1975, os reféns na embaixada em Teerão, o desastre nuclear de Three Mile Island em 1979, o assassinato de John Lennon (1980), o desastre de Chernobyl (1986) e tantos outros episódios…

Há algo que sempre reitero, mesmo que não sirva para grande coisa, o 25 de abril trouxe-me o bem mais precioso: a liberdade de expressão, a mim que sou um individualista nato e jamais conseguiria viver numa autocracia. Agradeço a liberdade que tanto prezo e pela qual lutei nos jovens anos, antes de ir "defender as colónias" de arma em riste, feito máquina de guerra, eu, que nunca andei à pancada com ninguém. Sem abril os melhores da minha geração teriam continuado a verter o sangue em África. Sem o 25 novembro 1975, o país dividir-se-ia ao meio numa guerra civil fratricida como a de Espanha, décadas antes, com o Norte e os Açores a recusarem a ditadura do proletariado.

Ainda há tempos, ao ler Umberto Eco O Cemitério de Praga, me apercebi de que como isto sempre aconteceu sem darmos conta. Entretanto, países habituados a mandar, os xerifes do universo (como os EUA, em substituição dos decadentes grandes impérios), continuam a inventar invasões, primaveras políticas, depondo ditadores ou democratas a seu bel-prazer. Dir-me-ão que a democracia ainda é o menos mau dos sistemas (como primeiro afirmou Winston Churchill). Claro que ainda é a pior forma de governança, salvo todas as outras, e não adianta chorar sobre os seus defeitos: a corrupção dos políticos de todas as cores, o nepotismo, os arranjinhos parlamentares (ora agora mamas tu, ora logo mamo eu.)

Dantes, os países democráticos tinham eleições, os outros não (nem mesmo as mascaradas eleições do partido único em Portugal o ocultavam). Hoje assistimos a um novo e preocupante paradigma, a semi-democracia com a aparência (eleições e tudo o mais) e resultados viciados (a eleição de Trump com a ajuda de Putin), roubo descarado de votos e manipulação rumo à via autocrática travestida de democracia oca. Assistimos, nas últimas décadas, a um ataque à democracia, e são as instituições europeias quem mais tem atrofiado o funcionamento dos sistemas democráticos. A democracia é uma planta muito frágil que precisa de ser regada diariamente.

O exemplo da democracia, semiautonómica, é bem visível nos Açores no parlamento regional com uma teórica liberdade de escolha, mas onde as decisões relevantes para o povo açoriano são definidas pelo governo central, ao atropelo e revelia das normas autonómicas, com a cumplicidade das forças locais, mero pau-mandado dos partidos cuja sede está em Lisboa. O povo, que até nem é totalmente ignorante, vota com os pés (isto é, abstendo-se) ou vota a favor dos que o mantém, subsidiodependente. Um ciclo vicioso: vota em mim e recebes apoios, não votas e desenrascas-te sozinho contra a malha burocrática que te vai aniquilar. As vozes independentes, poucas e raras, vão sendo silenciadas, sem lugar a destaque nos meios de comunicação, quase totalmente emudecidos na onda de autocensura que lhes permite sobreviver. Estamos rumo à autocracia, mas com a manta diáfana da aparência democrática. Infelizmente, o pior está para chegar. O nacionalismo e a xenofobia chegam com o voto do povo.

 E até eu, que sempre me considerei um otimista nato, tenho demasiadas dúvidas, rodeado por autómatos não-pensantes, obcecados com os pequenos ecrãs dos smartphones e impérvios aos atropelos à dignidade, equidade e justiça, em volta. Possa eu continuar a falar, em casa e na rua, sem medos persecutórios, mesmo que as palavras não cheguem a muitos nem sejam lidas, e isso já me contentaria nos dias difíceis que se avizinham. Quando essa liberdade se perder, de facto terei de me conformar e aceitar um ”chip” para o meu próprio bem, como nem George Orwell (1984 e o Triunfo dos Porcos) nem Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) conseguiram imaginar.

Depois há a saga das armas químicas do Saddam (que nunca existiram) e o que se sucedeu desde então numa voragem de petas universais, em nome das quais se fizeram guerras, se mataram milhares, se causaram milhões de refugiados, se destruíram países e se importou o seu petróleo, esse vampiresco adereço da sociedade ocidental. Líderes apeados, outros por apear, governos fantoche e fantoches no governo, a ignorância subiu ao poder, diria Brecht se fosse vivo… os farsantes e falsários de religiões, seitas e demais congregações enriquecem à custa das hordas de ignorantes capazes de se atirarem do precipício abaixo como se seguissem o flautista de Hamelin enleados na melopeia de inverdades.

E uma pequena elite grisalha de pessoas (não é a peste grisalha) que ainda tem e usa cérebro e pugna pela cultura, educação, capacidade de discernimento, de discussão, de questionar as premissas e tirar conclusões, esmagada pela força opressora das maiorias carneirentas, sem capacidade nem peso para aumentar a massa crítica dos concidadãos que seguem fingindo ser livres sob o cajado opressor da sociedade que os manipula.

E é essa elite que ao longo dos anos lembra o descarado genocídio na Palestina, na Birmânia (Myanmar os Rohingya), no Iémen e tantos países de que mal ouvimos falar, a guerra silenciosa no Sudão, os milhares de naufragados no Mediterrâneo pagos a preço de ouro às máfias de traficantes, os mercados de escravos na Líbia e no Google onde os árabes escolhem os seus, o trabalho infantil que mata milhares no Congo (República Democrática onde também há genocídio mas ninguém diz), a fome oculta nos sem-abrigo que enchem as ruas das cidades norte-americanas (e quantos deles são dejetos humanos das guerras que os EUA fomentam e alimentam por todo o mundo? Dantes ainda lhes chamavam veteranos de guerra, agora são meramente ”homeless people.” Depois, há as intervenções ocultas, descaradas ou assim-assim dos EUA nas quatro partidas do mundo, sendo notórias na América do Sul (incluindo inúmeros falhanços na Venezuela). Sou contra todas as guerras que a humanidade teve desde que existe.

E o mundo, ao qual pertenço, o que fez? Encolheu os ombros e saiu para jantar fora que a crise ainda permite esses luxos e esta vida são dois dias. Temos de aproveitar e comer.

Virão novas ditaduras e novas guerras, de formas nem sequer imaginadas por George Orwell e eu mais impotente que nunca teclando umas palavras para uma minoria esclarecida e lúcida, mas sem poderes de alterar seja o que for. Temo que a democracia tenha sido apenas um interregno entre ditaduras. Os dias de hoje assemelham-se a narrações que ouvi do meu pai antes da segunda guerra mundial, poucos prestam atenção ao avanço dos nazis, dos fascistas à velha moda, dos bufos, da cumplicidade dos medos, das guerras religiosas, dos fanatismos, da nova inquisição, da nova censura e não me revejo nas novas cruzadas.

Estava em Telavive uns dias antes da Guerra do Yom Kippur de 1973, e na Cidade do Kuwait dois dias antes de Saddam invadir em 1990, saí de Timor em 1975 pouco antes da guerra civil e estive em muitos outros locais, dias antes de sérios conflitos, mas só agora em 2022 senti o cheiro a morte e o terror da guerra ao pé da porta, na invasão e destruição da Ucrânia pela Rússia autocrática e imperial, com risco enorme de alastrar e chegar aos 27 países da UE mesmo sem o deflagrar atómico. E antes de cá chegar, direta ou indiretamente, pergunto-me se toda a minha vida de pacifista a acreditar na Pax Europaea não terá sido em vão, nesta impotência quotidiana que sinto perante a guerra, a morte, destruição e a ambição desmesurada imperialista da Grande Rússia? Enquanto não passar fome, frio ou sentir as bombas a cair talvez valha a pena continuar a acreditar na vitória do bom senso e sonhar com tréguas ao som lacrimejante dos que morreram ou tudo perderam.

Chrys Chrystello, [email protected]

Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713

[Australian Journalists' Association - MEEA]

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