Paulo Fidalgo

Paulo Fidalgo

Ai os velhos, meu Deus

Temos cada vez maior dificuldade em lidar com a velhice. Com a nossa e com a dos outros. Na minha infância não era assim. No tempo em que eu nasci as pessoas envelheciam na família e aí morriam, cuidadas pelos novos que os velhos, enquanto novos, tinham cuidado.

Os filhos viam os pais a cuidarem dos pais deles e a educação fazia-se pela evidência de amor, respeito, temor ou mero interesse nas heranças. Mas no fim do dia, os velhos iam para a cama com a certeza de que existiam mesmo, ocupavam um espaço visível e a sua realidade era tão tangível quanto a da sua descendência.

Sei bem que hoje já não somos uma sociedade de origem predominantemente rural e que a longevidade trouxe problemas de saúde dificilmente tratáveis em ambiente doméstico.
Também é verdade que a maioria dos velhos não amealha património suficiente para bastar-se a si mesma, nem recebe reformas sobre as quais possa medrar o interesse comercial dos lares profissionais.
Mas mesmo nas condições do real que temos, o estatuto social dos velhos degradou-se de forma inexplicável e inaceitável.

Se não fossem as instituições de base solidária milhares e milhares de velhos morreriam como cães abandonados por esse País fora, longe do aconchego ou da culpa das suas famílias.
Tenho extrema dificuldade em lidar com isto. Arrepia-me pensar no que será alguém ver-se no fim da vida sem um mínimo de autonomia e sem a certeza do amor de alguém do seu sangue zelando pelo que come e veste, sem uma atenção amiga às maleitas e às histórias do que foram.

Lembro-me constantemente de, em criança e adolescente, o meu Avô Francisco Fidalgo me provocar com uma conversa que durante anos me fazia chorar e que depois se transformou numa piada entre os dois.
Queixava-se ele: "vale-me a pena andar aqui a trabalhar para vós! Quando morrer vendeis tudo e ainda por cima me mijais na campa".

Em miúdo levava tão a sério estas "bocas" do meu Avô que ficava extremamente zangado e chorava envergonhado por antecipação desse pecado que cometeria no futuro.

Mais tarde, a frase transformou-se em piada minha e quando não queria que o meu Avô se esforçasse ou fosse sozinho para as vinhas dizia-lhe:
- "Avô, onde é que vai a esta hora? Vale-lhe a pena andar a trabalhar como um doido! Quando morrer vendo tudo e ainda por cimo mijo-lhe na campa..."

O meu Avô Francisco fitava-me com aquela luz que lhe saía dos olhos quando estava feliz e entre dentes remordia:
-" Meu sacana, sabes muito tu...sabes muito..."

Quem dera aos velhos portugueses terem netos que ao menos lhe mijassem na sepultura. Boa parte deles vive hoje sob a ameaça de nem sequer terem quem os enterre.


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