Paulo Fidalgo

Paulo Fidalgo

Envelhecer: Facto certo com data incerta

Lembro-me perfeitamente do dia e da hora em que o meu Pai ficou velho. Foi no dia 18 de março de 1995 e seriam umas quatro da tarde. Tínhamos acabado de deixar o meu avô Francisco Fidalgo no cemitério de Freixiel, nos sete palmos de terra que ele próprio fez questão de escolher e pagar.

Era um dia ameno, nem quente nem frio, de uma pré primavera que pedia casaco. Vínhamos os dois a pé para casa, ombro com ombro, ambos em silêncio, fitando o granito velho na calçada da nossa pequena Rua Grande.

Já avistávamos a casa onde nasci quando o meu pai, numa voz calma, quase neutra, disse:

- Pronto. A seguir vou eu. Agora enterrámos o Avô e a seguir enterras-me tu a mim. O meu Pai foi-se embora, fico eu na vez dele. Sou o próximo, pronto.

Fiquei chocado. Nem tive vontade de olhar o meu pai de frente. O Senhor Armando estava com medo, não o temor físico da morte que é próprio dos covardes e impreparados, mas um medo avassalador, filosófico, pleno, um medo só possível a quem compreende num lampejo que há um tempo e é finito.

Nesse dia e nessa hora apeteceu-me voltar a chorar, não por medo da morte ou pena do meu Pai, mas porque também eu, nesse instante, compreendi qualquer coisa de fundamental – a vida dos nossos pais é-nos necessária como barreira contra a nossa própria morte.

Nessa meia-tarde de março estiquei o meu braço esquerdo sobre os ombros do meu Pai, dei um puxão violento ao seu corpo chocando-o contra o meu, apertei-o como se fosse eu o Pai dele e disse algo razoavelmente estúpido mas verdadeiro.

- Tenha lá calma com isso Senhor Fidalgo, que eu ainda não tenho filhos e preciso de si para me ajudar a criar meia dúzia.

Voltámos os dois a um silêncio só quebrado pelos nossos passos nas pedras da rua, mas percebi claramente que o meu Pai tinha acabado de ficar velho, extremamente velho, apesar de estar no patamar hoje juvenil dos sessenta anos.

A perda do meu Avô Francisco tinha colocado o meu Pai perante essa circunstância inexorável de já não ser Filho e, em consequência, tinha perdido esse poderosíssimo escudo contra a percepção da finitude que era a vida e energia do seu próprio Pai.

Vinte e sete anos depois deste diálogo, tenho a incrível sorte de poder continuar a usar o Senhor Armando como barreira contra a minha própria morte, continuando a sentir-me um jovem Filho do meu Pai, nada preocupado com a finitude do meu tempo.

Mas sei perfeitamente que algum dia tomarei o lugar dele na fila para o cemitério de Freixiel e que, nessa data e hora, sentirei profundamente o peso do tempo e angústia da velhice, num processo radical de envelhecimento filosófico e sem remédio.

Nessa data, que desejo tardia, não fugirei do tempo nem fingirei que estou distraído da minha hora de envelhecer, porque a vida e o convívio prolongado e íntimo com os meus velhos Avós e Pais me preparou para essa fase da existência, que tanto tememos como desejamos.

E quando chegar a minha vez de ocupar os sete palmos de terra fúnebre que Francisco Fidalgo nos legou, espero que a pequena Rua Grande ouça os passos serenos das minhas filhas e dos seus filhos, voltando à casa onde nasci, para continuarem a viver o seu tempo na plenitude que a consciência do que somos nos permite.

Envelhecer é felizmente uma possibilidade em aberto quando nascemos. O passar do tempo e alguma prudência costumam permitir à maioria chegar a velho. Aproveitemos.


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