A Proteção de Dados -  Registo da temperatura dos trabalhadores

 A Proteção de Dados -  Registo da temperatura dos trabalhadores

Vivemos tempos de exceção em face da pandemia da COVID-19 que impôs enormes restrições na vida quotidiana. A verdade é que nada será como dantes e por um imperativo de saúde pública, estamos a adaptar-nos a uma “nova” normalidade em que a utilização de equipamentos individuais de proteção, o distanciamento social e o reforço das medidas de higiene e desinfeção de pessoas, espaços e superfícies passaram a fazer parte das nossas rotinas.

Graças ao elevado sentido de responsabilidade de todos nós no cumprimento das rígidas medidas adotadas, a situação epidemiológica referente à doença Covid-19 está  minimamente controlada.

Tal situação possibilita que de forma progressiva estejam a ser levantadas as restrições e as medidas de confinamento do estado de emergência que vigorou até ao passado dia 2 de maio de 2020, embora com todo o cuidado e toda a cautela face ao previsível aumento do risco de contágio pela maior circulação de pessoas que começam a retomar as suas vidas, na medida do possível.

Em pleno estado de calamidade, na iminência de ser prorrogado até ao final de maio e na véspera do início da segunda fase do plano de desconfinamento, que prevê a abertura de parte considerável da atividade económica e cultural, importa refletir sobre uma das medidas preventivas que podem ser implementadas e que tem suscitado muitas dúvidas e interrogações.

Em causa está a realização da medição de temperatura corporal dos trabalhadores e o subsequente registo da temperatura associado à identidade da pessoa por parte das entidades empregadoras.

Considerando que está em causa o tratamento de dados pessoais relativos à saúde, estes dados sensíveis são objeto de especial proteção nos termos do artigo 9.º do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (Regulamento UE 2016/679 de 27 de abril de 2016) e o artigo 29º da Lei nº 58/2019, de 8 de agosto de 2019 que assegurou a sua execução, na ordem jurídica nacional.

Nessa senda, a autoridade nacional em matéria de proteção de dados, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (doravante “CNPD”) emitiu a 23 de abril de 2020, um conjunto de orientações sobre recolha de dados de saúde dos trabalhadores em que recorda às entidades empregadoras que se devem “abster de adotar iniciativas que impliquem a recolha de dados pessoais de saúde dos seus trabalhadores quando as mesmas não tenham base legal, nem tenham sido ordenadas pelas autoridades administrativas competentes”. 

Apesar de estarmos em face de uma situação de pandemia, entende a CNPD que “nada justifica a realização de atos que, nos termos da lei nacional, só as autoridades de saúde ou o próprio trabalhador, num processo de auto-monitorização, podem praticar”.

Até porque refere ainda a mesma autoridade que “o legislador nacional não transferiu para as entidades empregadoras uma função que é exclusiva das autoridades de saúde, nem estas delegaram tal função nos empregadores”.

Assim, não pode uma entidade empregadora proceder à recolha e registo da temperatura corporal dos trabalhadores ou de outra informação relativa à saúde ou a eventuais comportamentos de risco dos seus trabalhadores.

A legislação laboral (Código do Trabalho), no artigo 17.º rege a proteção de dados pessoais, dispondo que o empregador não pode exigir a candidato ou a trabalhador que preste informações relativas à sua saúde.

Por sua vez, o artigo 19º proíbe o empregador de exigir a candidato a emprego ou a trabalhador a realização ou apresentação de testes ou exames médicos, de qualquer natureza com ressalva de que os mesmos tenham por finalidade a proteção e a segurança do trabalhador ou de terceiros.

Em todo o caso, o médico responsável pelos testes e exames médicos só pode comunicar ao empregador se o trabalhador está ou não apto para desempenhar a atividade, sem prejuízo de no âmbito da medicina do trabalho, o/a profissional de saúde que aí exerce a sua atividade poder avaliar o estado de saúde dos trabalhadores e obter as informações que se revelem necessárias para avaliar a aptidão para o trabalho conforme dispõe o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho.

Com o intuito de pôr fim à celeuma criada em face da posição tomada pela CNPD, o Governo por via do Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de maio de 2020 que alterou as medidas excecionais e temporárias relativas à pandemia da doença COVID-19 no seu artigo 13.º-C abriu a possibilidade de serem realizadas medições de temperatura corporal a trabalhadores para efeitos de acesso e permanência no local de trabalho, sendo proibido o registo da temperatura corporal associado à identidade da pessoa a menos que haja a autorização expressa da pessoa visada.

Outro aspeto relevante é a possibilidade de ser impedido o acesso ao local de trabalho do trabalhador, que registe uma temperatura corporal superior ao normal.

Em jeito de breve apreciação à norma acima citada podemos dizer que a mesma não está isenta de críticas por não ter respondido às questões que se seguem e à qual procuraremos contribuir para o devido esclarecimento:

  1. Quais os pressupostos legais do poder da entidade empregadora para impedir a entrada dos trabalhadores no local de trabalho, uma vez que não existe uma temperatura-padrão para efeitos do artigo 13.º-C?

Em cima da mesa, colocam-se duas hipóteses: ou a temperatura-padrão é aquela que está definida pela Direção Geral de Saúde ou é a temperatura habitual de um determinado trabalhador, o que implica a existência de um registo da temperatura normal na posse direta da entidade empregadora, o que lhe está vedado.

  1. Quais as consequências decorrentes do exercício desse poder por parte da entidade empregadora em relação ao trabalhador que registou uma temperatura corporal acima da normal?

Estando o trabalhador impedido de aceder ao local de trabalho para exercer a sua atividade, por ter alegadamente um sintoma da doença covid-19 (febre), não tendo sido a sua suposta aptidão ou inaptidão para a prestação do trabalho confirmada por um/a médico/a, está desde logo afastada a possibilidade de baixa médica, o que coloca o trabalhador numa enorme vulnerabilidade.

  1. Sabendo que a relação laboral tem uma natureza assimétrica existirá uma verdadeira manifestação de vontade relativamente ao registo da temperatura corporal?

 

Sendo a relação laboral marcada por uma assimetria de poder existente entre trabalhador e entidade empregadora, a manifestação de vontade (“autorização expressa” exigida pela lei) acaba por não ter relevância jurídica, se atendermos que a norma em causa prevê um poder do empregador, sem que tenham sido acautelados os interesses dos trabalhadores que foram completamente esquecidos, com as consequências danosas que daí possam resultar.

 

Como acabamos de explanar, tem-se a nítida ideia de que foi uma norma elaborada sem o mínimo cuidado e sem debruçar-se em relação a aspetosrelevantes na vida dos trabalhadores.

 

Em suma,  a pandemia não suspendeu os direitos dos trabalhadores na proteção dos seus dados.

Em fase de ausência de norma específica até à publicacao do Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de maio de 2020, a CNPD entendeu ser ilícito o registo da temperatura dos trabalhadores

Com a publicação do DL.  o empregador pode fazer depender o acesso ao local de trabalho da temperatura corporal do trabalhador.

Ainda assim varias questões ficaram por esclarecer, como por exemplo, qual é e quem define a temperatura padrão a ser aplicada ao trabalhador.

Na vertente preventiva aceita-se que os trabalhadores possam ser objeto de medição da temperatura corporal, especialmente quando o exercício da sua atividade implica contato com outras pessoas, mas tal não poderá ser feito de forma arbitrária e discriminatória.

Espera-se que o bom-senso possa prevalecer dado que a norma não acautela os interesses dos trabalhadores que se vêem numa situação de grande fragilidade.

 

Mónica Teixeira ADVOGADA


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