Alexandre Parafita

Alexandre Parafita

Vem aí o monstro...

Nos últimos dias, uma das velhas e emblemáticas locomotivas da Linha do Tua, que deu vida durante quase um século a este reino maravilhoso que é o Vale do Tua, viajou para França onde irá ser restaurada e posta a operar ao serviço do turismo de paisagem, turismo de qualidade. Certamente levada por gente com grande visão sobre os desígnios do futuro, alinhada com o lado mais promissor de uma Europa atenta à valorização dos territórios, que procura riqueza no bem-estar e autoestima das suas populações. Uma visão claramente oposta à que vigora por cá, onde se abandona a mesma Linha do Tua com os seus 124 anos de história e memórias, em território ainda em estado quase selvagem, dotado de um potencial cénico e turístico de fazer inveja. E com ela, abandona-se a paisagem, os recursos endógenos, as povoações e desrespeita-se a autoestima das gentes que ali vivem.

São sinais claros de uma decrepitude civilizacional de que dificilmente se recuperará. Sinais que não se ficam por aí, e que alcançam dimensão cruel com o avanço da famigerada Barragem do Vale do Tua, um dos crimes ambientais mais gravosos de que há memória no interior português. O monstro, como os ecologistas lhe chamam, aproxima-se a passos largos, preparando-se para engolir um dos paraísos mais belos do nordeste transmontano e um pedaço nobre do Douro Património Mundial. E mais uma vez também, as vozes revoltadas dos ecologistas e das populações intentam fazer-se ouvir, numa derradeira petição à UNESCO, como quem procura, desesperadamente, gastar os últimos cartuchos de uma guerra de David contra Golias. É que a albufeira vai estender-se ao longo de 37 kms, eliminando, em definitivo, todo o Vale do Tua, com os seus ecossistemas raros e as implicações na alteração no microclima e sobrevivência das espécies; mas agravada ainda pela passagem dos corredores de linhas de alta tensão sobre dezenas de aldeias a ligar a barragem à rede elétrica nacional, com as monstruosas torres metálicas, equivalentes a 25 andares, instaladas em pleno coração do Douro Vinhateiro.

E com tudo isto, no ar permanece a ameaça de a UNESCO poder cassar a classificação de Património Mundial. Dizem os estudos que a barragem apenas contribuirá com 0,1% do total nacional da energia consumida, correspondente a 0,5% da eletricidade. Pergunta-se: valerá a pena arriscar tanto para obter uma tão pequena fatia de eletricidade para o país?

in Jornal de Notícias

(6-5-2016)


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