Barroso da Fonte

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Os galgos do Niassa: a maior tragédia da guerra do Ultramar

Chegou ao mercado livreiro uma obra que denuncia e relata, 56 anos depois, a maior tragédia da guerra do Ultramar.

É seu autor um ex-alferes miliciano que prestou serviço em Moçambique, entre Outubro de 1967 e Dezembro de 1969. Morreram nessa tragédia 101 militares, nenhum deles do quadro profissional. E mais sete mortos que trabalhavam na empresa do Batelão que fazia o atravessamento do Rio Zambeze de uma margem para a outra, quer das trinta viaturas quer dos militares que foram, verdadeiramente, carne para canhão.

 No jornal Notícias de Barroso de 1 de Julho de 2019, o seu diretor que foi encarregado de, como alferes miliciano de proceder ao relatório da tragédia diz o seguinte: «Foi dia 21 de Junho de 1969 que teve lugar no Rio Zambeze, em Moçambique, a travessia entre Chupanga e Mopeia. Morreram afogados 101 militares e sete elementos da tripulação do Batelão que fazia a travessia entre margens. Conseguiram ser recuperados os corpos de 101 soldados (1 alferes, 1 sargento, 1 furriel, 10 cabos milicianos, e 88 soldados)». Como se pode deduzir não foi nenhum capitão de Abril, destacado para essa missão. E foi destacado este alferes miliciano para liderar o processo de recuperação, identificando os corpos à medida em que iam sendo resgatados os cadáveres. Esse alferes pertencia à companhia 1798, do Batalhão 1935. Foi ele mesmo que diligenciou em organizar um cemitério e descortinar urnas para todos os mortos. Mais: teve o cuidado de meter em garrafas de cerveja a identificação de cada vítima.

Para memória futura, além dessa mortandade, em série, foi preciso descortinar gruas, guindastes  e outros meios para resgatar cerca de trinta viaturas.

O próprio oficial que foi destacado para tão complexa e difícil tarefa escreve nesse texto que «as chefias militares não deram o devido valor ao sucedido porque passados poucos dias, a Companhia de Morrumbala, era, de novo, mobilizada para o cenário da guerra em Mutarara, acima de vila Cabral, durante mais dois meses».

 Só o Correio da Manhã, através do Jornalista Fernando Madaíl que publicou uma reportagem na Revista desse diário, na edição do dia 16 de Junho de 2019, que publicou um artigo sobre tão trágico acontecimento.

Quando decorria o cinquentenário dessa brutalidade militar, esse matutino deveria ter aprofundado tão humilhante ordenança militar. Se a RTP, ou qualquer outro canal televisivo, repete horas, dias e semanas, relatos de militares de carreira, que endeusam, medalhando facínoras, como Rosa Coutinho? 

Por que não recordam os jornalistas e os órgãos de informação, onde trabalham públicos e privados, denunciando este tipo de notícias objetivas, enquanto estão vivos os seus protagonistas.

Por definição o jornalismo é uma ciência que deve formar e informar a opinião pública. Voltamos a ter uma geração de notáveis repórteres de guerra. O cenário que decorre na Ucrânia que ameaça o mundo e que já entrou no terceiro mês, mostra tudo a todos. Esse cenário escancarou a maldade, a hipocrisia, a altivez, de governantes sem tino, sem respeito pela humanidade e sem uma réstia de remorsos.

Quem nunca conhecera a barbaridade das guerras, velhos e novos, de todo o mundo, já ficaram avisados daquilo que elas são e daquilo que podemos ter de enfrentar.

A minha geração entrou no mundo entre guerras mundiais. A história dessas duas  desordens universais (1914-1945), foram-nos relatadas por familiares, pelos compêndios e pelas redes sociais que já não encobrem artificialismos, por parte de quem as provoca e quem se masturba enquanto as contempla.

Portugal atravessou muitas e, tiveram justificadas motivos. Até a mais mortífera teve  razões, enquanto guerra defensiva. Pecou pela sua longividade. Deveria ter-se dado autonomia, mais cedo aos Povos que conquistámos e civilizámos. Ter-se-iam evitados os nove mil mortos da chamada guerra do Ultramar. Eu chamo-lhe, convictamente, assim, porque em tempos recuados, esses territórios correspondiam aos colonatos ou colónias. Mais tarde passaram a chamar-se Províncias. Antes de ser Portugal, foi Portuscale.

Fosse pelo que fosse a descolonização teria que fazer-se. Foi boa para uns e foi má para muitos mais. O que veio foi criar tremendas injustiças. Também para alguns profissionais das armas que já tinham cumprido as suas comissões de serviço e sonhavam chegar ao generalato. Muitos desses ficaram em coronéis. Por outro lado aqueles que ainda eram cadetes e teriam de entrar na carreira, com ordem e disciplina, saltaram para o terreno, atabalhoadamente para que alguns milicianos que, por qualquer razão, pretendiam ingressar no quadro, não lhes tapassem as vagas.

 Os milicianos foram afastados de uma forma intempestiva, desrespeitosa e ingrata. Foi o Decreto-lei nº 353 de 1973. Reforçava a necessidade de aumentar oficiais do quadro, uma vez que já eram eles que satisfaziam as necessidades.

A inveja, o medo e o interesse provocaram a intromissão dos cadetes que apressadamente, se valeram das armas e da solidariedade de alguns capitães mais indignados que incitaram as mais jovens classes da Academia Militar. Os milicianos foram ostracizados, humilhados e tratados como seres desprezíveis. Prestavam as suas comissões de serviço, com competência e respeito pela hierarquia. E poucos eram aqueles que optavam por aproveitar os benefícios da «Lei assassina» que apressou o golpe de estado e a «descolonização exemplar». O desprezo pelas funções que exerciam vem à tona neste livro do alferes miliciano Carvalho de Moura, que foi o 1º eleito para Presidente da Câmara de Montalegre, por quatro mandato. Deveriam ter sido o Comandante do Batalhão, da Companhia ou de outro oficial do quadro. Pelos vistos o alferes serviu para esses profissionais do quadro acabarem essa comissão de serviço e iniciar outra. O «pobre» miliciano que, meses depois acabou a comissão obrigatória, foi tratar do ganha-pão. Os 101 militares lá estarão, já cinza, com a garrafa da cerveja e  identificação à espera que a Liga dos Combatentes ou de uma entidade idónea vá procurá-los.

O exemplo que acima cito a respeito da tragédia do Rio Zambeze, é uma clara demonstração de que os milicianos foram «carne para canhão»; eles e os (mais atraiçoados) soldados que, cumprindo, simplesmente um dever cívico, ali se afogaram. Tinham perdido os empregos ou emigraram. E destes esqueceram-se os governantes, todos eles, porque a maior parte nunca tratou, por ignorância e burocracia, das leis (poucas e loucas) que foram saindo. Até António Costa lhes retirou a Secretária de Estado dos «Antigos Combatentes». E a maior parte dos cartões, de insígnias e dos transportes estão esgotados.

Barroso da Fonte


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