Luis Guerra

Luis Guerra

​Que comecem os jogos!

Começou o Campeonato Mundial de Futebol…

E, com isso, veio-nos à memória a frase lançada no filme “Os Jogos da Fome” (“The Hunger Games”, no original em inglês), realizado por Gary Ross e baseado no livro homónimo escrito por Suzanne Collins, que dá título a esta crónica.

De facto, o Mundial de Futebol começou envolto em polémica, por causa da situação dos direitos humanos no Qatar, país organizador, desde logo pelas vidas humanas perdidas na construção dos estádios e demais infraestruturas de apoio à competição, em muitos casos por falta de condições laborais, sem as devidas compensações financeiras às famílias desses trabalhadores, a grande maioria migrantes.

Além disso, também se evocou a discriminação que afeta as mulheres e a comunidade LGBTQ+ daquele país da península arábica, temendo-se pela repressão que os adeptos que aí se desloquem, possam sofrer em função do seu género e da sua orientação sexual.

Está em causa um evento de enorme projeção mediática e, por tabela, política e económica, para além do fenómeno desportivo que lhe está subjacente.

Daí que muitas vozes se tenham levantado contra este Mundial de Futebol, particularmente no que respeita à participação, senão das seleções nacionais, pelo menos dos altos representantes dos Estados ocidentais e dos cidadãos dos mesmos, como espetadores, tendo havido quem apelasse ao boicote à competição.

O boicote a grandes eventos desportivos já teve os seus precedentes, concretamente no tempo da Guerra Fria, mediante a recusa de participação recíproca nos Jogos Olímpicos de Verão de 1980 (Moscovo) e 1984 (Los Angeles) por parte de norte-americanos e soviéticos, respetivamente, e alguns dos seus aliados. Mais recentemente, os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022 sofreram um boicote diplomático por parte de alguns Estados ocidentais, que, sem renunciarem à participação desportiva, não enviaram à China as mais altas figuras do Estado.

Como é evidente, trata-se de uma questão complexa, na qual os atletas acabam convertidos em peões de um jogo de bastidores que os ultrapassa, quando é certo que, para muitos deles, é uma aspiração competir num evento desportivo desta envergadura, tendo trabalhado arduamente com esse objetivo.

Contudo, é bem verdade que não se pode fingir que nada se passa em torno desta competição, em nome da paz desportiva, quando há direitos humanos a ser espezinhados no país organizador, com a carga de sofrimento individual que isso implica.

O problema complica-se quando se compreende que, para muitos países do mundo, o tema dos direitos humanos tornou-se um pretexto de ingerência política e cultural das potências ocidentais na condução dos seus destinos, às vezes mediante o uso da força militar. Com efeito, dessa perspetiva, os direitos humanos surgem vinculados a uma conceção da vida política e económica, que traz a democracia liberal e a economia de mercado atrás, em conformidade com o modelo vigente no espaço cultural ocidental. No entanto, essa conceção choca com os modelos culturais de muitas regiões do mundo, além de constituir fator de exposição ao domínio económico das empresas multinacionais de origem ocidental e ao estilo de vida que promovem.

Por outro lado, a intervenção externa, como aconteceu no Afeganistão - para citar um exemplo -, suscita fortes reações identitárias, percebendo-se que a maioria da população se identifica com os costumes locais e os defende, ainda que pareçam bárbaros a olhos estrangeiros.

De resto, neste domínio, a política externa ocidental tem sido contraditória, deslegitimando, de certo modo, a defesa dos direitos humanos feita pelos seus Governos, uma vez que têm protegido países alinhados com os seus interesses, apesar do fraco desempenho destes nesse âmbito, a que acresce a experiência colonial recente de muitos deles, que ainda perdura na memória dos povos colonizados.

O que fazer, então, para proteger os direitos humanos?

Os direitos humanos são uma construção jurídica para tentar erradicar a violência e a discriminação da vida social, sobretudo aquela que é exercida pelos poderes constituídos e afeta, em especial, as minorias sociais.

Nesse sentido, os direitos humanos traduzem, ainda que de forma imperfeita, uma aspiração profunda do ser humano no sentido da superação da dor e do sofrimento, mediante a ampliação da liberdade e da justiça social.

Essa aspiração, que se pode sintetizar no ideal e na prática da não-violência, tem raízes em diversas culturas e não apenas na ocidental, na qual os direitos humanos foram historicamente concebidos.

Por isso, pode dizer-se que os direitos humanos são um património de toda a humanidade. De resto, é inegável que os direitos humanos, consagrados nos documentos internacionais a partir de meados do século XX, têm desempenhado um papel importante na humanização das sociedades, contribuindo para o progresso do ser humano.

Contudo, nem a sua formulação é uma obra acabada, como as barreiras atualmente colocadas aos migrantes ilustram, nem a sua implementação tem que redundar na uniformização das culturas e dos modelos sociais.

Nesse sentido, quando numa dada cultura se exerce violência ou discriminação contra uma pessoa ou um grupo social, a mesma deve ser repudiada nesse ponto preciso, reivindicando o respeito pelos direitos humanos desses indivíduos ou coletivos, sem que, com isso, se deva tratar de julgar essa cultura como um todo, desqualificando-a por completo, a partir de uma posição de suposta superioridade moral ou civilizacional.

Na realidade, cabe a cada povo, politicamente organizado, encontrar a melhor forma de traduzir com bondade essa aspiração profunda universal que inspirou a criação dos direitos humanos, e de plasmá-la no seu ordenamento jurídico e estilo de vida, deixando para trás o que se lhe opõe. Para isso, as declarações e pactos internacionais de direitos humanos devem servir de referência, mas não podem servir de instrumento para um novo imperialismo cultural.

Organizar um evento desportivo mundial implica expor-se aos olhares e às críticas de muita gente, não é apenas uma gala divertida, vaidosa e lucrativa, mas a abertura que o mesmo proporciona pode ser indutora de grandes transformações. Esperemos que os qataris saibam aproveitar a oportunidade para corrigirem as injustiças que subsistem na sua sociedade.

 

Luís Filipe Guerra

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