Luis Guerra

Luis Guerra

Posições e interesses

As recentes negociações em torno do Orçamento do Estado do próximo ano vieram trazer à tona a necessidade de fazer intervir alguns princípios e técnicas da mediação de conflitos nesse tipo de conversações, para que as mesmas possam decorrer num clima cooperativo e chegar a um entendimento que satisfaça ambas as partes.

Com efeito, no geral, as partes tendem a debater e a negociar a solução de um determinado litígio com base nas suas posições, procurando aproximar as mesmas mediante a obtenção do máximo de concessões possível e a cedência do mínimo possível.

Contudo, desde logo, essas posições estruturam-se a partir de uma determinada visão da realidade, a que poderíamos chamar “paisagem”, usando a terminologia adotada pelo escritor argentino Silo.

Com efeito, este autor explica que “paisagem externa é o que percecionamos das coisas; paisagem interna é o que peneiramos delas com o filtro do nosso mundo interno. Estas paisagens são uma só e constituem a nossa indissolúvel visão da realidade[1].

E, mais adiante, agrega que “convém, além disso, distinguir entre mundo interno e «paisagem interna», entre natureza e «paisagem externa»; entre sociedade e «paisagem humana», repisando que ao mencionar «paisagem», está-se sempre a implicar aquele que olha, diferentemente de outros casos em que o mundo interno (ou psicológico), natureza e sociedade, aparecem ingenuamente como existentes em si, excluídos de toda a interpretação”.

Deste modo, uma condição de origem que importa desmontar em qualquer negociação é a crença ilusória de que a visão de cada um corresponde à própria realidade e isso implica, desde logo, a escuta ativa do outro, para entender o seu ponto de vista sobre o mesmo objeto, bem como a disponibilidade recíproca para o questionamento e a autocrítica.

Por outro lado, apresentada a posição de cada litigante, torna-se necessário indagar sobre os verdadeiros interesses que se escondem sob a posição manifestada, que constituem o núcleo do que se quer preservar ou atingir e que alimentam sempre um certo calculismo e uma certa reserva na negociação.

Na verdade, a menos que esses interesses sejam explicitados, a outra parte tem muita dificuldade para conseguir compreender a posição do oponente, gerando-se um fenómeno de reafirmação dos próprios argumentos e levando a discussão para um ponto de repetição, impasse e bloqueio da negociação.

É provavelmente desse tipo de experiência que surge a expressão “travar-se de razões”, uma vez que cada parte está convencida da sua razão e encerrada na mesma.

No entanto, se as partes, por si ou com a ajuda de um mediador de conflitos, conseguem partilhar os seus interesses respetivos no decurso da negociação, por mais embaraçosos que possam parecer, possibilitam a construção de um clima de confiança e a identificação de pontos comuns, que ajudam à procura de uma solução mutuamente satisfatória.

Nesse sentido, o objetivo de qualquer negociação deveria ser encontrar respostas para os interesses de cada parte, descolando das posições iniciais de cada uma, já que estas constituem apenas a munição de que os litigantes se servem para proteger ou alcançar aqueles.

É, por isso, que na mediação de conflitos se fala de acordos de “ganha-ganha”, por contraponto à lógica adversarial em que se trata de encontrar vencedores e vencidos e diferentemente da mera conciliação de posições, em que nenhuma parte fica satisfeita.

Estes conceitos, se levados à prática, podiam ter feito variar a sorte das negociações sobre o Orçamento do Estado do ano de 2022, independentemente do que venha a ser o desfecho deste processo político.

De facto, fica a sensação de que os envolvidos não foram capazes de descolar das suas posições, pese embora algumas aproximações, para revelar e passar a trabalhar com os interesses nucleares de uns e outros, que não são necessariamente aqueles que foram verbalizados por cada um deles.

Pese o exposto, se mais não for, esta experiência serve de aprendizagem para o futuro coletivo e pessoal. Assim, tomara que se possam incorporar estes princípios e técnicas em próximos processos negociais.

 

Luís Filipe Guerra, juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas

[email protected]

 

[1] Cfr. Silo. Humanizar a Terra. A Paisagem Humana. Cap. I: As paisagens e os olhares. www.silo.net


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