João Carlos Brito

João Carlos Brito

"Para muita léria um bom arrocho"

“Para muita léria um bom arrocho

Quantas vezes, em conversa com gentes de outras bandas, somos mal entendidos ou mesmo desentendidos por causa de uma palavra ou expressão que só nós e os que nos são próximos utilizamos? Acontece a todos, seguramente. Mas a verdade é que, nos tempos atuais, com a massificação e a padronização da linguagem, acontece muito menos vezes… porque todos falamos cada vez mais da mesma maneira, independentemente da região de que somos oriundos.

Mesmo com esta ameaça do centralismo e dos chamados registos linguísticos dominantes, continuamos a pronunciar palavras nossas, que herdamos dos nossos pais e avós. Esta resiliência vocabular é, evidentemente, uma marca identitária. Define-nos enquanto grupo com características peculiares e, ao fim e ao cabo, é esta diversidade que contribui para a unidade e para a riqueza da língua portuguesa. Mas é fundamental que saibamos e queiramos preservar este património.

Palavras e expressões como “arrocho” ou “caga-lérias” subsistem ainda em Trás-os-Montes, que é um dos nichos vocabulares mais ricos de Portugal, mercê de fatores históricos, culturais e geográficos, entre outros. São o bilhete de identidade do transmontano a qualquer sítio a que se desloque. E, para aqueles que teimam em denegrir esta extraordinária maneira de falar, de certeza que uma boa arrochada será remédio santo para esse tipo de lérias…

 

Arrocho

Pau curto e grosso

Dar uma arrochada ou, bem pior, levar uma arrochada, são expressões bem populares entre os transmontanos. Significa, no sentido mais lato, dar (ou levar) uma tareia com um pau como instrumento da agressão. Assim, está claro que o arrocho (ou “arrotcho”, como é carismaticamente pronunciado sobretudo na parte mais a sul da região) é um pau curto e grosso. Mas não só. Além dessas duas características, inicialmente era também ligeiramente curvado, a fazer lembrar um boomerang. Havia uma razão muito especial: é que eram usados pelos moleiros para apertarem muito bem as cordas que seguravam a carga sobre os animais de transporte no sentido de nada se perder. Estamos a falar de uma época em que todas as migalhas de farinha eram preciosas, sobretudo em tempos de privação (guerras, doenças, racionamentos). O arrocho era, pois, um instrumento que o moleiro não podia dispensar.

É também altamente provável que, outrora, a palavra arrocho se escrevesse com “x” (arroxo), o que vem comprovar o seu nome, pois, quando muito apertada, a carne assume essa coloração, como acontece no ato de esganar ou então com a apelidada “doença azul” dos recém-nascidos que, por problemas de irrigação de oxigénio ao cérebro devido ao aperto de uma veia ou artéria, faz com que o bebé fique roxo, problema que, felizmente, hoje, na maioria das situações tem solução.

 

Caga-lérias

Fala-barato | exagerado

Quantas vezes, ainda hoje, se ouve, de forma depreciativa, dizer “coitado, caga lérias como bôbedas!”, quando a intenção é desvalorizar alguém que tende a exagerar e/ou a mentir ou então a debitar uma série infinita de disparates (já agora, “bôbedas” são abóboras!).

Um caga-lérias é um fala-barato, alguém que tem muita conversa fiada. Curiosamente, no Brasil, existe a expressão lero-lero com o mesmo sentido: palavreado, lábia. Por tudo isto, é muito provável que “léria” (além de ser um apetitoso doce amarantino) provenha do grego leros, que quer dizer delírio, pois um caga-lérias é seguramente alguém que está em constante estado de delírio. Aliás, a expressão “estás a delirar!” acaba por ter um sentido muito aproximado.

 

João Carlos Brito

Professor, linguista, escritor.


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