Vítor Batista

Vítor Batista

O Alfa e o Ómega das coisas humanas…

O Alfa e o Omega, ou seja, o Princípio e o Fim são constantes intemporais na ordem natural das coisas! Nada escapa à "lei natural" e “Toda a Causa tem o seu Efeito e todo o Efeito tem a sua Causa! Estes são alguns dos princípios de sabedoria que auxiliam e suportam os nossos raciocínios e reflexões empíricas do dia a dia.  Mesmo não sabendo definir o que é exatamente a “lei natura”, uma coisa é certa, nada escapa a um princípio e a um fim e, cada vez mais, reconheço existir uma lei de causa-efeito, no sentido em que há uma causa para todo o efeito, um efeito para toda a causa e que o acaso não passa de uma lei desconhecida. Na verdade, os fenómenos parecem-me cada vez mais acontecer num sistema integrado e lógico, onde nada parece ser desperdício e tudo parece ter um prepósito no desempenho de um papel e na obediência a regras bem definidas.

São estes os pressupostos que aqui quero chamar para vos construir o princípio, o meio e o fim da narrativa da minha ideia. Uma ideia que, enquanto cidadão, passa por uma procura de respostas reflexivas em torno das ameaças à maior das conquistas do cidadão nas civilizações mais modernas, a democracia participativa. Um sistema político que se distingue dos restantes pelo verdadeiro respeito pela vontade popular e a que melhor garante o princípio da cidadania. Contudo, vivemos o “Antropoceno”, época geológica marcada pela modelação humana e pelas consequências nefastas dos seus atos na natureza, pela crescente degradação dos ecossistemas, e nas próprias organizações que construiu e que hoje são o garante da coesão e do equilíbrio das suas sociedades mais modernas.

Estará a democracia representativa a viver um estado de falência, antevendo o ómega da sua existência?

Esta é a pergunta que me coloco e o cerne do desenvolvimento da minha ideia, que passa por um interesse meu, quase que inato, porque naturalmente me predisponho numa procura de respostas às coisas humanas por analogia das coisas naturais, isto é, leva-me num automático pensamento baseado no funcionamento da natureza. De facto, o Homem é elemento da natureza e, mesmo que o seu processo cultural seja um desafio à ordem natural, a verdade é que quanto mais nos compreendermos mais reconhecemos a nossa proximidade às coisas naturais e a nossa dependência dessas raízes. Já a linha cognitiva, que ambiciono adotar, é construtivista e em jeito de inquérito, onde o leitor poderá coletar os condimentos mínimos para cozinhar as suas próprias respostas conclusivas.

Mas para debater o estado de saúde da democracia numa relação de causalidade, não podemos deixar de trazer à equação o facto de a democracia moderna estar sustentada no princípio de participação dos cidadãos a partir da escolha de representantes políticos. O que legitima reconhecer que esta deve a sua existência aos partidos políticos, até porque, se olharmos para trás, o surgimento e a evolução dos partidos políticos estão relacionados com o desenvolvimento dos sistemas democráticos e a consequente conquista do direito de eleger e ser eleito.  Da mesma forma, na degradação desses sistemas democráticos, sentimos a mesma legitimidade de atribuir aos partidos políticos os créditos da falência democrática, motivada pela própria degradação e/ou auto-degradação dos sistemas e estruturas partidárias.

Dissecando um pouco mais nas fontes de pressão sobre as estruturas democráticas, encontramos a condição humana a modelar os comportamentos individuais e coletivos nas raízes mais profunda do problema. A democracia é efetivamente o melhor sistema que temos para garantir o principio da cidadania, mas não podemos permitir à própria democracia a legitimação de coisas menos democráticas. A democracia participativa exige-nos uma cidadania ativa e atenta, porque a passividade deixa a gestão do bem-comum à mercê da vontade dos eleitos e legitimados e no pior à mercê de uma (in)gestão e (di)gestão do bem coletivo para alimentar o interesse pessoal e/ou setorial.

 

Depois desta introdução dedutiva que abordou o tema desde problema até às raízes mais profundada das suas causas, proponho agora que me acompanhem no seu desenvolvimento assente numa abordagem indutiva, numa viagem pelo problema que se inicia na condição humana, passando pelos sinais de crise e termina na mitigação.  

 

A condição humana na embriogénese do problema.

 

Não somos a primeira espécie a dominar o nosso planeta, e nada nos garante que sejamos a última! Na verdade, a oportunidade de dominarmos só surgiu porque os dinossauros despareceram de campo, há 66 M.a. Nós, humanos, somos apenas uma das muitas espécies que habitam o planeta Terra, mas a única que "estupidamente" é capaz de romper o equilíbrio da natureza de que faz parte e que o sustenta. Há muito que estamos numa relação desigual para com a natureza e num enredo egoísta em tudo semelhante à narrativa da parábola do filho pródigo. Mas, um dia perceberemos definitivamente que somos parte do ecossistema e que de todas as espécies somos a que mais depende da natureza, porque somos aquela que se “artificializou” num aparentemente afastamento da natureza, mas à custa de soluções fornecidas por essa mesma natureza e sem as quais não podemos viver.

 

Vivemos tempos de mudanças rápidas!  Mudanças tão rápidas que não nos permitem perceber o princípio e o fim das coisas, ao ponto de nos levar a agir como se as coisas fossem eternas, desvalorizando-as e ignorando-as nos desequilíbrios que lhes provocamos. Vivemos uma sociedade de alta velocidade, onde o ciclo dos acontecimentos é cada vez mais acelerado e o fim do velho sobrepõe-se cada vez mais ao início do novo, sem nos dar tempo ao “luto”, à reflexão e à aprendizagem. Porém, o ser humano necessita conhecer e dar sentido ao princípio e ao fim das coisas para as diferenciar nos processos, nos desenvolvimentos e nas dinâmicas e, assim, identificar os erros e ser capaz de promover a melhoria contínua, individual e coletiva, no fluxo do tempo.

 

Numa perspetiva etológica, isto é, à luz da ciência que estuda o comportamento social e individual animal no seu ambiente natural, quanto mais nos compreendemos mais nos reconhecemos como semelhantes dos restantes animais, na forma como os nossos instintos básicos nos condicionam e nos modelam os comportamentos. Significa que no nosso longo processo de humanização não eliminámos esses instintos, apenas encontrámos formas de os inibir e de os condicionar num limiar que nos permite viver em sociedade e progredir no contexto cultural. Então, quer isto dizer que os nossos instintos básicos continuam dentro de cada um numa condição reprimida, num estado involuntário de manifestação imprevisível aquando de um contexto adverso. Facto que nos obriga a uma apertada vigilância individual e coletiva por forma a garantir que o interesse de cada um não se sobrepõe ao equilíbrio do bem de todos.

 

Os sinais de crise da democracia participativa

Num simples olhar em redor, imediatamente percebemos que somos uma sociedade feita de organizações. Elas são públicas, da sociedade civil, de beneficência, empresas, etc, às quais nenhum de nós escapa em pertencer-lhe ou dela depender, pois na verdade são estas que fornecem os bens e serviços necessários ao funcionamento da sociedade. A democracia acaba por assumir um papel “chapéu” ao garantir o equilíbrio e bom funcionamento das outras organizações em cadeia. Mas, afinal quem são as organizações? Somos nós, no lugar que ocupamos e nas funções que desempenhamos, onde os nossos comportamentos marcam a diferença na forma como nos comprometemos individualmente com a Visão, a Missão e os Valores dessas instituições.

 

Numa análise comparativa, baseada no funcionamento da natureza, comparo a Democracia aos Ecossistemas, isto é, da mesma forma que os ecossistemas são a unidade funcional da organização da Vida e o garante do bom funcionamento da biosfera, a Democracia é igualmente a unidade funcional da organização humana e o garante da coesão social. As espécies, organizadas em diferentes níveis de Vida, são os homens e as mulheres que constituem as instituições. Assim, da mesma forma que nas coisas naturais cabe à Natureza garantir a evolução dos ecossistemas, num equilíbrio adaptado à evolução dos tempos e dos contextos, nas coisas artificiais é ao Homem que compete esse papel, regular as suas próprias organizações de forma a que prosperem e garantam que os seus propósitos e missões continuem atuais. Como a natureza sabe sempre dar a volta, pela resiliência dos ecossistemas, igualmente a democracia saberá ultrapassar crises.

Vistas bem as coisas, não é na democracia participativa ou na sua estrutura governativa que o mal está instalado. Parece evidente que o mal prolifera nas organizações que estão na sua alçada, contaminadas pelas ações dos atores que as constituem e gerem.  O foco está na liderança e na abordagem assumida num desrespeito pela Visão, pela Missão e, principalmente, pelos Valores dessas instituições. Ao invés de servirem o cidadão e abrirem as organizações à cidadania participativa, corrompe-se nas regras fundamentais da democracia, fechando-as à participação mais alargada do cidadão, aniquilando a razão de existir das próprias organizações que gerem.

Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo alemão que dedicou a sua vida ao estudo da democracia, partilhou da convicção generalizada, que me parece atual, de “que a democracia só terá um futuro garantido quando as sociedades democráticas forem capazes de produzir os atores competentes para a criação das suas regras fundamentais.”[1]

 

A mitigação das ameaças

Até aqui uma coisa dou como certa, a Democracia saberá dar a volta por cima, pois numa analogia aos processos naturais, uma crise dará sempre oportunidade à continuidade, por mais tempo, das coisas que estão adaptadas, extinguirá todas aquelas que já não cumprem os seus propósitos, e, preferivelmente, dará oportunidade a coisas não totalmente novas, refundadas a partir das partes “sãs” das coisas em falência ou a coisas totalmente novas para ocuparem os espaços vazios deixados pelas coisas extintas. É nesta redundância conseguida pela diversidade (de cidadãos, neste caso) que a natureza busca as soluções para evoluir e demonstrar a sua resiliência nas adversidades e no tempo.

 

Numa abordagem de gestão de impacte, aparentemente a melhor estratégia de mitigação parece ser a de deixar a natural evolução das coisas atuar, largando mão do que já não cumpre a sua função e dando espaço às novas coisas que surjam. Apesar da tranquilidade aparente que aqui transmito, identifico focos de ameaça preocupantes à estabilidade democrática que, na minha opinião, devem ser mitigados de forma a não causarem danos de difícil conserto, não esperando que a natureza atue pelas próprias leis, pondo ordem nas coisas.  

A maior ameaça que identifico advém do forte declínio na confiança que os cidadãos depositam nas instituições partidárias e nos cidadãos que, através delas, legitimamos para nos representarem, evidenciada não só pela drástica redução de filiados, mas sobretudo pelo crescente surgimento de movimentos de cidadãos a competirem no espaço tradicionalmente ocupado pelos partidos políticos. Numa perspetiva mais desatenta, até parece ser uma coisa boa, como se se estivesse a devolver a democracia ao seu dono, ao cidadão, só que esta brecha no sistema político-democrático, pode causar danos irreparáveis. O melhor para a democracia é ainda uma solução que passa pela revitalização do sistema político-partidário e que as soluções ressurjam dentro do sistema partidário conhecido. E porquê? Um pouco por toda a europa, os partidos entrincheiraram-se num isolamento e numa promiscuidade com os recursos do estado, numa barreira à entrada de novas instituições e novos cidadãos e em resposta a esta esclerose surge a oportunidade aos movimentos cidadãos, que se dirigem aos mais jovens num aproveitamento da sua natural irreverência na participação na vida política. Só que os partidos políticos reúnem um conjunto de características importantes para a democracia, que não são recriadas por estes movimentos de cidadãos e daí o risco. Estes, por norma, surgem intimamente ligados a grupos sociais específicos, num âmbito geográfico circunscrito e associados a um tema específico, mostrando serem estruturas menos organizadas, voláteis e cíclicas.

 

Os partidos políticos são necessários para manter um equilíbrio no sistema democrático, moderando a entrada de novos atores. Mas atenção, "as piores ameaças à democracia política são protagonizadas por aqueles que se acham superiores ao comum dos cidadãos ou então que se julgam portadores de verdades inquestionáveis" (2). Chama-se a isto o Síndrome da Superioridade Ilusória! Sobre esta epidemia dos tempos modernos e em jeito de “saiba mais sobre…”, para os resistentes e que ainda estão dispostos a ler-me por mais um pouco, termino com um antigo post meu:

“Na minha opinião é talvez a mais grave das doenças que a sociedade humana enfrenta atualmente. E não vai ser fácil erradicar causas a tempo de evitar uma destruturação da sociedade por implosão.

A origem está num vírus que provoca no indivíduo contaminado uma doença chamada Síndrome da Superioridade Ilusória. Doença que não é nova, mas que sempre foi controlada pela imunidade de grupo, ou seja, pelo efeito da superioridade numérica de indivíduos “vacinados” pelos valores e pelos princípios éticos recebidos desde o berço.

Infelizmente, hoje, os sinais são indicadores de endemia, ou melhor, característicos de uma pandemia! Já não se consegue esconder o caos social instalado. Estamos num “salve-se quem puder!” e num “quem vier a trás que feche a porta!”… Enfim, estamos no princípio de um fim!

Este fenómeno é descrito como um distúrbio cognitivo pelo qual os indivíduos, que possuem pouco conhecimento sobre um assunto, acreditam saber mais que outros melhor preparados. Porém, esta própria incompetência os restringe da habilidade de reconhecer os próprios erros. Estas pessoas sofrem de superioridade ilusória.

Uma sociedade sã é aquela onde o diálogo, a capacidade de escutar e de duvidar são os métodos para crescer, para aprender a aprender ao longo da vida. É aquela sociedade que reconhece na idoneidade uma mente cheia de conhecimento e experiência que garantem a SUSTENTABILIDADE do presente e do futuro. Mas lamentavelmente, esta sociedade de hoje  guia-se pela aparência. E as aparências enganam. Ah se enganam!

O que importa é fazer coisas e quantas mais, melhor. Trabalhar para números e para resultados de curto prazo são os indicadores de avaliação que nos impõem. O conteúdo, a relação custo-benefício, o retorno social…. pouco importa. Nada disso importa! As organizações andam a gastar tempo a querer perceber a influência do vazio e do nada nas Nossas Vidas.

A sociedade de hoje, ao nível das suas organizações (sejam públicas, privadas, da sociedade civil,… de âmbito local, nacional e/ou internacional, e/ou de natureza política, religiosa ou pagã) escancarou as suas portas a esta doença e privilegiou/premiou e continua a privilegiar/premiar a doença, cujo indivíduo doente apenas se preocupa com a forma de esconder a ausência de conteúdo. Verdadeiro exercício de ilusionista…   Qual Luís de Matos, qual quê! Ao pé deles, o Luís de Matos é um aprendiz de feiticeiro…”

 

[1] segundo António Manuel Martins, "Modelos de Democracia" in Revista Filosófica de Coimbra 6 (1997)85 -100

(2) Marinho e Pinto, em “A falência da democracia”, Jornal de Notícias, Opinião, 13-05-2013

Outras referências:

Jorge Fernandes, em “Os partidos e a democracia”, Observador, Opinião, 18-05-2015;

Vicente Romano Garcia, em “Ordem cultural e ordem natural do tempo”, CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA -CISC

 

Referência Inspiração:

António Damásio, em “A Estranha Ordem das Coisas: A Vida, Os Sentimentos e As Culturas Humanas”, Temas e Debates - Círculo de Leitores, 2017


Partilhar:

+ Crónicas