Vítor Batista

Vítor Batista

Interioridade #4: áreas protegidas nacionais em (co)gestão, embora numa (di)gestão propensa de co(n)gestão.

O modelo de gestão (co-gestão) das áreas protegidas já chegou aos parques naturais do nordeste transmontano, o  pioneiro foi o Parque Natural do Douro Internacional.

Uma área protegida, hoje mais que nunca, é um dos activos mais promissores, sobretudo se estivermos a falar de territórios com economias mais deprimidas. É um dos poucos activos que, numa governação e abordagem de gestão acertada e assertiva, é capaz de alavancar um território em torno de uma acção de marketing territorial promotor de uma marca, de uma imagem e de uma identidade própria, sustentada na riqueza endógena gerada pela Natureza e pelas Pessoas. O marketing territorial é hoje um emergente factor-chave para o desenvolvimento sustentável dos territórios e, por isso mesmo, qualquer estratégia de valorização do território, deve “plantar-se” bem estruturada para que nasça como se pretende, porque  “o que torto nasce, tarde ou nunca se endireita”.  

Desde 2007, que as áreas protegidas nacionais estão dadas ao abandono, cuja responsabilidade de gestão é do actual Instituto da Conservação da Natureza e Florestas, conforme o estipulado no n.º 1 do artigo 13.º do RJCNB (Regime Jurídico da Conservação da Natureza e dai Biodiversidade[1]), onde diz que “a gestão das áreas protegidas de âmbito nacional compete à autoridade nacional”. Por isso, era urgente repensar uma resposta para gerir, valorizar e valorar estes activos tão valiosos, mas numa solução séria e ampla para evitar amargos de boca e sensações “tiririca” (“pior que está, não fica!”) em todas as partes interessadas (stakeholders), principalmente os stakeholders locais, na hora de aceitarem, assinarem, e sobretudo, na hora de assimilarem o futuro a curto-médio-longo prazo.

Depois do Parque Natural da Serra de São Mamede, a 3 de Julho de 2020, chegou a vez do Parque Natural do Douro Internacional (PNDI) receber a “prenda” atrasada do seu 22º aniversário (11 de Maio), embrulhado no Decreto-Lei n.º 116/2019, de 21 de agosto, que define o “modelo de cogestão das áreas protegidas”. Numa analogia de bolo-rei (pré-ASAE), trata-se do “brinde”, para alguns, e da “fava” para muitos, mesmo para as próprias autarquias signatárias, que em modo de desconfiança se posicionam em jeito de terem “um olho no peixe, outro no gato”. O Parque Natural de Montesinho e o Parque Natural do Alvão deverão ser os próximos presenteados!

 

No preâmbulo do referido diploma, pode ler-se que “para esta nova abordagem concorreu determinantemente a experiência já adquirida e avaliada do projeto piloto para a gestão colaborativa do Parque Natural do Tejo Internacional, iniciado em 2017”. Ora trata-se de uma experiência em curso e cuja avaliação que refere, apenas, diz respeito ao primeiro ano de implementação do projecto-piloto (de abril de 2018 a maio de 2019), claramente insuficiente para evocar que houve aprendizagem adquirida. Na verdade, como é de esperar, os resultados não estão devidamente conhecidos nem robustos o insuficiente para poderem validar de “boa prática” este modelo que se pretende alargar às restantes áreas protegidas.

Para perceber que este modelo tem na sua concepção uma metodologia como “pés de barro”, basta olhar para estrutura simplista do Parque Natural do Tejo Internacional (PNTI) quando comparada com a das restantes áreas protegidas. Só por si, este exercício é suficiente para duvidarmos, à partida, de qualquer exercício de simples replicação do projecto-piloto experienciado no PNTI, sem antes proceder a uma melhoria baseada numa lista de sugestões[2]/considerações que foram feitas. Por exemplo: “i) o PNTI tem apenas três concelhos. A maioria dos parques da RNAP têm mais concelhos; ii) o PNTI tem baixa complexidade institucional com apenas uma Comunidade Intermunicipal, uma única Associação de Desenvolvimento Local, etc. A maioria dos parques da RNAP têm muito mais complexidade (podendo ter mais do que uma Região Administrativa/Região de Turismo/DRAP, mais do que uma CIM, ADL, etc.) e iii) o PNTI tem apenas oito freguesias, é de muito baixa densidade populacional e com uma carga/diversidade de atividades baixa. A maioria dos parques da RNAP têm mais freguesias, mais população e mais atividades/diversidade económica.” Só para ter uma ideia, o PNDI, abrange 5 concelhos, de dois distritos pertencentes a regiões diferentes, abrangendo 31 freguesias no total.

 

E quanto à gestão ou co-gestão, em que patamar é que ficamos exactamente?

Ora o diploma, por um lado, no nº 1 do artigo 5º, salvaguarda que  a gestão das áreas protegidas de âmbito nacional compete ao ICNF e por outro, aos órgãos municipais (autarquias), que só têm competências de gestão para as áreas protegidas de âmbito local, dá-lhe adicionalmente a possibilidade de participar na gestão das áreas protegidas de âmbito nacional, assumindo a presidência da Comissão de co-gestão da área protegida. Comissão composta por mais um conjunto de outras entidades, entre as quais o ICNF (que por sua vez já é o gestor). Onde já se viu o responsável da gestão de uma orgânica ter assento numa comissão de co-gestão (hierarquicamente abaixo) e ocupar lugar de vogal desse conselho? No mínimo, tudo isto é um pouco estranho e das duas, uma: ou a autoridade nacional (estado) quer agradar ao poder local, aniquilando-o no papel contestatário, ou é a forma airosa de se desresponsabilizar politicamente, passando o ónus da culpa para o poder local e livrar-se assim de críticas futuras. Na verdade, nós, cidadãos, a partir de agora a quem vamos passar a pedir responsabilidade, ao ICNF ou às autarquias?  Se formos coerentes com este processo, daqui a um ano já podemos alocar responsabilidades aos donos do processo, pois se um ano chegou para avaliar o desempenho do projecto-piloto e daí retirar lições de aprendizagem e extrapolação, também será o tempo suficiente para legitimar  a atribuição da responsabilidade dos resultados.

E relativamente às contribuições financeiras para execução do plano de co-gestão, quanto é e quem financia o orçamento anual? Esta dimensão é ainda mais dúbia. É o ICNF, via orçamento de estado (OE)? Quem não sabe o quanto a conservação da natureza é o parente pobre do OE e que sofre de infindáveis cativações orçamentais ao longo e um ano de exercício?  Estará o Estado a contar com os orçamentos próprios das autarquias e demais entidades co-gestoras? A ver vamos!

 

Foi uma oportunidade perdida e espero que, mesmo tarde, ainda se endireite.

Gostava de não ter razão, mas não creio! Por mais voltas que dê, apenas consigo ver um modelo de (co)gestão, numa (di)gestão propensa de co(n)gestão. Contudo, reconheço-lhe astúcia na forma como se apresenta e comunica, pois advoga engenhosamente nobres alicerces cimentados pelo chavão do tempo presente, o envolvimento das partes interessadas (envolvimento de stakeholdders). Efectivamente, é fundamental alargar-se à sociedade a participação nos órgãos governação, mas por si só não é garantia que daí resulte uma efectiva abordagem de gestão de proximidade e de envolvimento de stakeholders. Esta só é garantida na relação de confiança quotidiana e duradoura que se constrói com as pessoas e agentes económicos locais e não apenas com as instituições.

Só para relembrar, o modelo de gestão, que agora nos é apresentado como emblemático e inovador pela dimensão da co-gestão na decisão, é uma imitação mais alargada do que já existia, no tempo em que o ICN (Instituto da Conservação da Natureza) ainda geria as áreas protegidas. Até ao primeiro semestre de 2007, a gestão das áreas protegidas nacionais era assumida por uma comissão directiva com funções deliberativas de todas as decisões executivas, presidida pelo respectivo e então director, nomeado para o efeito e que assumia o rosto de uma gestão técnica profissional, e acompanhado de dois  vogais, um  autarca, nomeado pelos pares num regime de rotatividade, e um representante da presidência da autoridade nacional (então ICN, hoje ICNF), função normalmente delegada num dos vice-presidentes.  Não era preciso querer inventar a roda. A roda já foi inventada há muito!

Bastava pegar neste modelo com sucessos reconhecidos até ao momento que o assassinaram com o desinvestimento público. Bastava alargar e manter a Comissão Directiva, que já era em co-gestão, e criar um conselho consultivo ou de supervisão da Comissão Directiva, caso entendessem também ter essa função, onde os stakeholdders teriam assento, estes que agora se anunciam e outros que importa também chamar ao processo, para que funcione. Quanto ao financiamento, e de igual maneira, viria do orçamento de estado (de preferência ser incrito diretamente no OE, sem passar pelo orçamento do ICNF) ou outros fundos públicos e de receitas próprias, onde, através de protocolos, todos os outros parceiros se podiam juntar na alavancagem do orçamento base da área protegida. De uma coisa estou certo, seria mais racional, mais barato, e mais eficiente na relação custo-benefício para os ecossistemas e desenvolvimento local.

Esta visão de curto-prazo, sugere-nos que o Pai da Mindfulness se terá inspirado na forma de fazer política em Portugal para conceptualizar esta técnica de treino mental de redução de stress. Arte que ajuda as pessoas a lidar com os pensamentos e emoções, esvaziando-as de um passado e inibindo-as de uma preocupação com o futuro, isto é, restringindo-as a viver um presente mais feliz, livre de qualquer contaminação por pensamentos passados e futuros. No fundo, é este “espectáculo” que  temos vindo a assistir na acção  política nacional, sobretudo no que diz respeito à gestão das áreas protegidas nacionais: o que importa é o Hoje, “vender” a  ideia feliz de se ter nas mãos  a formula milagrosa para a cura dos males de sempre, deixando os resultados e os mesmos problemas por resolver para os que Amanhã vierem, pois já estará fora do ciclo político e já ninguém se lembrará. A eterna postura: Quem vier atrás, feche a porta!

 

09/08/2020 

Nota: Este texto é escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

 


[1] Decreto-Lei n.º 142/2008, de 24 de junho

[2] referidas no relatório final da avaliação externa, ao projecto Piloto para a Co-gestão do Parque Natural do Tejo Internacional, mediante do Protocolo de Colaboração Técnica e Financeira, estabelecido entre o Fundo Ambiental, a Federação EUROPARC e o ICNF a Gestão Colaborativa do Parque Natural do Tejo Internacional. Avaliação

 

 


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