Luis Guerra

Luis Guerra

Experiência, educação e norma

No início deste mês, tive ocasião de participar como orador nas XIII Jornadas Transmontanas de Direito do Consumo, que tiveram lugar na Escola Superior de Comunicação, Administração e Turismo, em Mirandela, a qual integra o Instituto Politécnico de Bragança, e que foram organizadas em parceria com a Associação Portuguesa de Direito do Consumo.

A edição deste ano das jornadas foi intitulada “Transição Ecológica e Sustentabilidade”, em consonância com uma das prioridades do nosso tempo, aliás refletida no Plano de Recuperação e Resiliência português.

As cinco comunicações apresentadas foram diversas e complementares: Jorge Pegado Liz falou de “Transição Ecológica e Consumidores: algumas noções fundamentais”; Ana Salcedo apresentou o “Projeto Replay”; Susana Almeida discorreu sobre “Greenwashing ou alegações ecológicas e como alertar e proteger os consumidores”; e Mário Frota perorou sobre “Envolver os Jovens, Projetar o Consumo Sustentável”.

Pela minha parte, procurei contribuir para este debate, abordando o tema das vias para se alcançar o consumo sustentável, que sintetizei no título desta crónica: experiência, educação e norma.

Com efeito, a produção e o consumo sustentáveis são um dos dezassete objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) estabelecidos na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU).

Contudo, pese embora a esperança e o entusiasmo com que estes ODS foram propostos no seio da ONU, não se pode deixar de problematizar como se há de conseguir uma adesão generalizada à sua consecução, isto é, como fazer para inscrever na cultura universal e no comportamento individual uma produção e um consumo sustentáveis.

De facto, em primeiro lugar, a ONU fixou os objetivos sem os mensurar com precisão e, sobretudo, sem concretizar os procedimentos para os alcançar, deixando margem para que os Estados membros e os agentes económicos definam os caminhos para esse efeito, mas abrindo também campo para desvios significativos.

Por outro lado, não se pode ignorar que o consumo na sociedade contemporânea compensa numerosas tensões mentais dos indivíduos, cumprindo uma função catártica, na medida em que os bens de consumo são carregados psicologicamente com atributos felicitários, induzidos pela publicidade.

Além disso, o consumo é uma das alavancas do crescimento económico, realimentando o setor produtivo e comercial e fomentando, por essa via, o emprego, pelo que o sistema económico assenta na premissa de uma procura crescente de bens de consumo.

Por último, o consumo não é homogéneo, diferenciando-se por estratos socioeconómicos, sendo certo que o consumo sustentável implica normalmente preços mais elevados, como acontece com o caso dos produtos biológicos, estando somente acessíveis aos grupos sociais mais favorecidos.

Estas são algumas das dificuldades que a consecução do objetivo de alcançar uma produção e consumo sustentáveis tem que enfrentar.

Contudo, a História demonstra que as mudanças sociais são possíveis e necessárias, permitindo reorientar a direção da construção humana em conformidade com as nossas melhores aspirações.

Neste caso, a mudança depende da generalização de uma experiência interna que propicie a tomada de consciência dos impactos da conduta quotidiana no ambiente e nos outros.

Este tipo de experiência pode surgir por efeito de uma forte necessidade ou de uma intencionalidade clara e firme.

Em parte, a emergência climática tem vindo a criar as condições para que se experimente essa necessidade urgente, gerando um clamor de mudança, nomeadamente entre as gerações mais jovens.

Porém, além disso, é possível alcançar uma compreensão profunda e global dos problemas sistémicos que a pegada humana está a criar, por efeito do modelo social e económico atual, e propor-se modificar o próprio estilo de vida de modo a viver-se em harmonia com a natureza e com os outros.

Esta compreensão pode chegar por via racional, coligindo e relacionando dados científicos, ou intuitiva, como acontece, neste último caso, em muitas formas de espiritualidade que descrevem experiências de comunhão com o todo, de sentir a energia ou a vida de todos os elementos do universo, de vislumbre do Plano ou Propósito que vive em todo o existente.

Estas experiências significativas têm o potencial de converter a vida do seu sujeito, reordenando as prioridades deste e estimulando uma conduta mais compassiva em relação a tudo o que o rodeia.

Neste campo, não se deve menosprezar o contributo que outras culturas diferentes da ocidental podem dar para o estabelecimento de uma relação mais harmoniosa com a Natureza, aprendendo com o seu exemplo.

Por outro lado, a educação, entendida não apenas como a educação formal, mas também como a paisagem cultural de cada indivíduo, joga também um papel importante na modelação de comportamentos, considerando a dimensão eminentemente social e histórica do ser humano.

E, por último, a norma legal, na medida em que contém a definição jurídica do comportamento correto e o sancionamento do comportamento desviante, tem também o potencial de impor um determinado modelo de conduta, protegendo e afirmando determinados valores ou bens jurídicos.

Estes três elementos mantêm entre si uma relação estrutural, já que uma dada experiência significativa tem a virtualidade de modificar os paradigmas educativos e inspirar novos comandos legais, mas, por sua vez, a lei carrega consigo valorações que enformam os modelos educativos e podem induzir experiências.

Neste passo, é importante frisar que cada um dos três elementos por si só não logra produzir mudanças sociais substanciais e duradouras, desde logo porque a experiência é pessoal e, de certo modo, intransmissível, salvo por aproximação; a educação habilita os indivíduos, mas não os molda; e a norma só vigora se e enquanto houver um mínimo consenso social a seu respeito.

Isto posto, é altura de enunciar propostas para o futuro, reconhecendo a relação entre a produção e o consumo sustentáveis, por um lado, e a economia circular, por outro, mas apontando as limitações da abordagem do que alguns autores chamam o “capitalismo verde”.

De facto, assistimos a uma incorporação da preocupação ecológica no discurso político e empresarial, mas branqueando os diferentes impactos ambientais de algumas das alternativas “verdes” que nos são oferecidas, tal como acontece com o problema do destino das baterias de veículos elétricos em fim de vida, como ilustrava um dos oradores das jornadas, só para citar um exemplo.

Assim sendo, torna-se necessário ter em conta que o nosso estilo de vida está dependente do modelo social em que vivemos e vice-versa, pelo que só uma transformação pessoal e social simultânea poderá produzir avanços significativos na direção do cumprimento dos ODS.

No entanto, mais uma vez, isso só será possível se a experiência humana, a educação e o sistema legal convergirem no sentido de modelar esses novos paradigmas que o futuro comum requer. 

 

Luís Filipe Guerra, juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas

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