Manuel Igreja

Manuel Igreja

A Linha do Douro e o contrassenso

Quando no tempo certo porque já passou o conveniente, os historiadores se debruçarem sobre as duas últimas décadas do século XX em Portugal, muito certamente irão concluir que o provincianismo, a falta de senso, a míngua de visão e de planeamento campearam na lusa pátria.

Com mundos e fundos ao dispor para utilizar na edificação de um país competitivo e preparado para o futuro, quem mandava e desmandava nisto tudo, desbaratou e permitiu o desbarato num regabofe de fartar vilanagem com alguns patrões e muita criadagem.

Imperou a miopia. Com um tecido produtivo muito ténue e de fraca valia enquanto fator de acrescento de valor, o país ficou dependente do setor da construção de obras, terreno fértil de aves de arribação com extrema falta de visão de para além do imediato.

Devido a isso, mas não só, apesar de à época o comboio ser já visto como o meio de transporte do futuro por razões práticas e essencialmente ambientais num planeta que urge preservar, em Portugal desatou-se a desativar linhas de caminho-de-ferro e a construir autovias que logo se veriam quase vazias.

De abandono em abandono, de desmazelo em desmazelo, os carris de linhas que nem veias de corpo se estendiam pelo território adentro ligando populações e servindo aspirações de idas e de vindas, foram sendo deixadas ao comer da ferrugem e ao soltar de parafusos.

Nunca mais nelas se ouviu o apitar dos comboios. Num mundo que se tornava cada vez mais pequeno porque cada viagem é uma escanchinha, boa parte das pessoas do país ficaram mais longe de tudo, porque a estrada para andar é muita e só para os que podem.

O caso da Linha do Douro é paradigmático e excelente exemplo para mais tarde dar em Cátedra em que se aborde e ensine o que não se deve fazer perante alunos que queiram saber caminhar rumo ao futuro.

Nos alvores da modernidade na segunda metade do século XIX, afirmou-se de imediato como uma das principais vias de acesso à Europa. Não terá sido por mero acaso que o grande Eça no seu superior livro A Cidade e as Serras, colocou o cosmopolita Jacinto vindo de Paris com destino a Tormes, a entrar em Portugal no comboio da Linha do Douro.

No reino do contrassenso a Linha do Douro foi sendo desqualificada a partir do ponto em que se deixa de ouvir o mar. Cá mais para dentro, uma viagem de e até à cidade grande que poderia fazer-se numa hora com conforto, faz-se em quase duas e em condições de antigamente.

Mas ainda mais para dentro e mais longe, nem isso. Pura e simplesmente não há comboios nem à tabela nem fora dela. Acabaram-se as passagens de nível porque se desnivelaram os direitos dos cidadãos residentes. Dizem que não vale a pena apesar do seu enorme potencial.

Sabem, mas não querem dizer, porque não querem fazer, que reabrir a Linha do Douro até à fronteira, ligaria quatro territórios Património da Humanidade, possibilitaria por exemplo transporte do imenso granito das terras de Vila Pouco de Aguiar, do minério de Moncorvo e dos vinhos do Douro para os portos de mar ou para a Caves em Gaia, mas nem assim estão para isso.

Estão cientes que a continuidade Espanha adentro se bem pensada é desejável e possível. Em Barca Dalva há coisa de uns dez anos, ouvi eu com estes ouvidos que a terra há-de comer, dizerem portugueses e espanhóis que sim, mais não fosse porque assim se aproximaria Salamanca do mar.

Mas não. Vão continuar a prometer, estes e outros, mas será tarde, demorará algumas décadas. Quem souber ver para lá de onde a vista alcança, tem a certeza que se repondo as coisas no caminho certo e porque não haverá lugar para contrassensos, os carros e os camiões irão ficar aparcados, mas os comboios irão andar seguramente desenfreados apesar das velocidades estonteantes.


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