Habitante dos Casares perdeu a conta às vezes que passou mercadoria entre as duas fronteiras

Tem 68 anos e passou mais de 20 a fazer contrabando, não fosse ele um dos rostos mais conhecidos dos Casares, aldeia raiana plantada nas fraldas da serra da Coroa, no concelho de Vinhais.

Para conseguir aquilo que a terra teimava em não dar, Fernando Manuel, tal com tantos outros jovens da época, aproveitou o vigor de outros tempos para carregar fardos de 40 e 50 quilos pela calada da noite, palmilhando trilhos de perigo entre Portugal e Espanha.
Perdeu a conta às vezes que levou tabaco para a zona da Mesquita e Castromil ou trouxe bacalhau para Portugal. Chegou a passar de tudo, desde burros ao sabão, e subiu a pulso na difícil carreira do “trelo”, termo utilizado pelas populações raianas para designar as aventuras do contrabando. Tanto assim era, que conseguiu chegar a encarregado de um grupo de quase 50 pessoas que, enfrentando guardas-fiscais e “carabineiros”, passava as noites num autêntico “leva e traz”.
Foi este homem bem disposto e cheio de histórias para contar que o Jornal NORDESTE encontrou numa tarde igual a tantas outras nos Casares. “Houve uma fase em que o ‘patrão’ não me pagava em frente aos outros, porque eu já recebia mais”, recorda Fernando Manuel.

“Passava-se tudo”

Mas, se a jeira aumentava, o mesmo acontecia com as responsabilidades que o ex-contrabandista tinha a seu cargo. Era ele que, em dias previamente combinados, transportava os maços de notas que haveriam de pagar o tabaco, o sabão, os animais ou o bacalhau trocado entre “patrões” portugueses e espanhóis.
Mais tarde, já na década de 80, “passava-se de tudo”. Ou seja, o contrabando começou a ir além do tabaco e do bacalhau, perdendo a inocência da luta pela sobrevivência. “Havia alturas em que eu levava uma caixinha e o que o meu patrão me dizia: ‘vais no meio de dois homens com fardo e, se alguma coisa correr mal, mais vale perder os dois fardos do que a caixa”, recorda Fernando Manuel.
O contrabandista de outros tempos nunca soube o que transportava, mas, pelo tamanho da caixa, suspeitava-se que a droga começava a entrar no circuito do contrabando. “Não sei, porque nunca abri a caixinha, mas havia quem falasse nisso”, reconhece o sexagenário.
Nesta vida de “noites claras”, a convivência entre contrabandistas e guardas-fiscais era quase inevitável, até porque a aldeia tinha um posto desta guarda fronteiriça. O dia a dia corria sem contratempos, com contrabandistas e evitar dormir com o sol já alto para afastar quaisquer suspeitas. Mas, o meio é pequeno e todos sabiam quem andava no “trelo” e quem só vivia da agricultura.

“Estava à sua espera”

Fernando Manuel era mestre na arte de despistar a Guarda Fiscal e na tarefa de escolher a melhor altura para passar a mercadoria. Corria a década de 70 quando guardas do posto e contrabandistas participavam numa matança do porco que se prolongou pela tarde fora. Aproveitando o empenho dos elementos do posto fronteiriço, Fernando Manuel decide engendrar uma saltada a Espanha para levar um carregamento de burros. Combinou tudo na perfeição com um colega, mas eis que aparece um guarda-fiscal no local do encontro. “Oh Manel, o que é que estás a fazer aqui”, pergunta-lhe o agente da autoridade. O contrabandista não esteve com meias medidas. “Ó homem andava a ver onde é que você estava porque lá na matança está tudo à sua espera para almoçar”, atira-lhe Fernando Manuel com uma espontaneidade acima de qualquer suspeita.
Ultrapassado este pequeno contratempo, decide avançar sozinho com os burros, porque o colega distraiu-se com “questões de saias” e faltou ao encontro. “Então ia lá desaproveitar a matança, com todos os guardas distraídos!”, recorda.
É este homem, ainda hoje aguerrido, que tem sempre relatos do “trelo” na ponta da língua. Mais do que isso. É um exímio coleccionador de utensílios usados no quotidiano rural de há 30 ou 40 anos e tem um pequeno museu em casa.



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