Saiba onde param os descendentes de Manuel Buíça, um dos homens que protagonizou a morte do Rei D. Carlos, há 100 anos

Aconchega o boné de lã azul quando se lhe pergunta se conhece alguém da família de Manuel Buíça, o regicida. “Já não há ninguém”, atira Álvaro David, enquanto pega num braçado de lenha para atear a fogueira.

O fim de tarde anuncia-se gélido e nas ruas da transmontana Lagarelhos pouco se afoitam, enquanto da maioria das chaminés já se solta um fumo azul-cinza que vai cobrindo os castanheiros. É nesta aldeia, a meia dúzia de quilómetros de Vinhais, que o regicida viveu com o pai, o padre Abílio Augusto Buíça, abade naquela vila. É mais uma tentativa para encontrar descendentes do homem que no dia 1 de Fevereiro de 1908, com Alfredo Costa, atirou sobre D. Carlos...
“Lá para baixo, para Abrantes, vive um sobrinho meu (por parte da mulher) que ainda pertence a essa família”, informa Álvaro que diz não ter recordações de, em criança, ouvir falar da família Buíça. “Só quando era mais velho ouvi falar do homem que matou o rei. E sempre em sentido negativo”.
O sobrinho de Abrantes a que Álvaro se referia é Armando Fernandes, a quem já não foi dado o apelido Buíça. “Não mo deram por ser considerado pejorativo e para não ser incomodado”, diz Armando, enquanto mostra a certidão de nascimento da mãe, Clemencia Maria, filha de Francisco do Nascimento Buíça, um segundo primo do regicida.
“Em Lagarelhos nunca houve repercussão da nossa presença”, diz este antigo funcionário da Fundação Calouste Gulbenkian, licenciado em História e que tem pesquisado a genealogia dos Buíças.

Para encontrar algum familiar de Manuel Buíça é preciso calcorrear muitos caminhos

De facto, para encontrar algum familiar de Manuel Buíça é preciso calcorrear muitos caminhos. Armando encontra uma justificação para a dispersão da família, após o atentado do Terreiro do Paço. “O estigma foi tão grande, que ainda ouvi o meu avô contar que a família tinha sido ameaçada de ser morta até à sexta geração”. Daí lembrar-se de um “falso” - esconderijo no interior das paredes - na casa de Lagarelhos.
Manuel Joaquim Barroso, outro natural de Vinhais que há mais de uma década investiga a família Buíça, recorda: “Das oito irmãs só duas ficaram na terra”. Toda a família se sentiu publicamente reprovada e “muitos deixaram de colocar o apelido aos filhos”, anota Barroso, no que é corroborado, em Lisboa, por Estela Belém Pereira, neta de Elvira, uma das irmãs do regicida que permaneceu em Vinhais. “A família foi para o Brasil, por se sentir perseguida”, diz Estela, que já não herdou o sobrenome Buíça, e cujos irmãos mais velhos - Helder e Maria Júlia - “ainda foram incomodados nos liceus, em Lisboa, por professores mais arrogantes”. Com esta palavra Estela quer significar “monárquicos”...

Isabel, o mais novo elemento do clã Buíça, nasceu a 5 de Outubro

Quem nunca se sentiu incomodada com o apelido é Isabel, de 25 anos. O mais novo elemento do clã Buíça nasceu... no dia 5 de Outubro, em Bragança, para onde se dispersaram alguns ramos da família. Ela própria só descobriu a ligação familiar com Armando Fernandes através do Expresso. O avô de Isabel, José Manuel Buíça, era irmão da mãe do antigo funcionário da Gulbenkian.
“Quando na televisão passava alguma reportagem sobre D. Carlos ficávamos atentos a ver se falavam dele (do regicida)”, Isabel evoca o seu avô como “um polícia com ar austero mas com muita honra no seu republicanismo”. Na escola de Bragança nunca ninguém questionou o apelido mas, já na Universidade, alguém lhe perguntou “se pertencia à tal família”. Mas terá sido “mais por curiosidade”.
O mesmo não se passou com o avô de Armando. Francisco Buíça, que no Rio de Janeiro (Brasil) passou a ser olhado de soslaio na empresa inglesa de carros eléctricos quando um administrador descobriu que era primo “do Buíça que matou o rei”. Viu-se obrigado a regressar a Lagarelhos em 1958. “Os ingleses nunca perdoaram a Manuel Buíça”, diz Armando.
Estela também “regressou à terra da família em adulta”. Mas por curiosidade. Já não encontrou nada da família. A casa e as propriedades do abade Abílio Buíça (pai do regicida e da avó de Estela) “tudo se perdeu e a família dispersou-se”, Estela conseguiu preservar uns talheres em prata - “herança da minha avó” - gravados com o monograma do abade Abílio Buíça, o seu bisavô, que nunca rejeitou o filho, mantendo-se republicano, mesmo depois de 1910, ao arrepio da maioria do clero.



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