Um céu carregado de nuvens negras onde o sol apenas conseguiu mostrar-se fugazmente e de forma tímida, alguns aguaceiros intimidatórios, nevoeiro q.b. e uma temperatura que desaconselhava retirar os agasalhos não roubaram o brilho à 1ª etapa do Portugal Lés-a-Lés Classic.
Tão pouco impediram os sorrisos bem abertos no rosto dos participantes na chegada a Chaves, depois de 199 km do mais prazenteiro mototurismo desde Bragança. A torre de menagem de um dos castelos fundamentais na História Nacional serviu de excelente pano de fundo às motos clássicas e antigas que dali partiram para a mais recente aventura criada pela Federação de Motociclismo de Portugal.
Forma de reviver e honrar o arranque do 1.º Portugal de Lés-a-Lés no já longínquo ano de 1999, a estreante edição Classic começou bem no coração de Bragança, com os primeiros mototuristas a saírem para a estrada debaixo de um tempo invernoso, com chuva e um céu tão escuro que só os mais otimistas conseguiam vislumbrar sinais de melhorias climatéricas. Mesmo assim ninguém se acanhou, até porque os adeptos das motos com mais anos de vida são malta de rija têmpera. Que não ficaram nada atrapalhados quando, alguns, tiveram de começar o dia com sessões forçadas de mecânica…
Foi o caso de Luís Pinto, o dono da moto mais antiga do pelotão, a Indian Scout de 1928 que fez birra depois de passar a noite à chuva, obrigando a limpar o magneto que teimava em não dar sinais de vida mesmo antes da partida. Ou a Yamaha XT600 de Bernardo Rego com o motor a falhar depois da água isolar a vela daquela que, curiosamente, era a moto mais recente do grupo (1986). E que só voltou à estrada depois da intervenção do experiente e precavido Francisco Sanchez, que trazia toda a ferramenta necessária na sua Triumph 3T de 1948. Menos sorte (ou, pelo menos, mais trabalho) teve Jorge Teixeira que, graças a um problema no carreto de uma roda teve de deixar pelo caminho o side-car da Vespa Sprint V 150. Mas conseguiu seguir viagem ainda que apenas em duas rodas…
Mas se o nevoeiro e a chuva não deixaram desfrutar de uma natureza frondosa a verdade é que criaram um ambiente único, com misticismo que quase fazia adivinhar o aparecimento de um personagem medieval após cada curva. Também por isso, o percurso foi feito com cuidados acrescidos porque estas motos, fabricadas entre 1928 e 1995, são, na sua elegância histórica, quase todas desprovidas de ABS, controlo de tração ou outras ajudas eletrónicas à condução, normais nas máquinas mais recentes.
Algo sensível no empedrado à saída do castelo de Bragança, na ponte romana de Gimonde ou em algumas das 92 aldeias espalhadas pelos cerca de 75 mil hectares do Parque Natural de Montesinho. Da quase deserta Guadramil até Rio de Onor, aldeia dividida a meias entre o concelho de Bragança e o município espanhol de Pedralba de la Pradería, pertencente à província de Zamora. De onde, sublinhe-se, partiu o original Lés-a-Lés em 1999, e onde Ângelo Moura esteve presente com a mesma Yamaha TDM 850, de 1991, que alinha agora no Classic.
No verdadeiro santuário da natureza, com autênticos bosques encantados em plena Terra Fria Transmontana tempo para apreciar verdadeiros tesouros paisagísticos derivando para a parte final da EN 308, os mais belos quilómetros desta estrada que pode proporcionar uma entusiasmante viagem de mais de 300 quilómetros até Darque (Viana do Castelo). Com o grego Zeus, o romano Júpiter ou o nórdico Thor, deuses venerados pelas respetivas civilizações quando a questão é o clima, divertidos a brincar com os participantes, o tempo ia dando umas tréguas, para, a espaços, melhor desfrutar da envolvente paisagística das excelentes estradas como a municipal M501 até França ou da surpreendente N103-7 até Meixedo, e depois o regresso à N308, rumo a Moimenta, local do já aguardado almoço.
Antes, e entre as nuvens ameaçadoras no horizonte e alguns promissores raios de sol, paragem em Vilarinho, onde o apicultor Luís Correia carrega o fardo de revitalizar a aldeia, com boa ajuda das abelhas das suas 900 colmeias. O mel e outras delícias locais foram o mote para a paragem na Apimel, funcionando como um aperitivo para o repasto que seria servido uns quilómetros adiante. E que, por força da instabilidade do tempo, trocou o aprazível parque de merendas junto à histórica Fraga dos Três Reinos (que marcava os limites de Portugal, Galiza e Leão) pela sede da Associação Cultural e Recreativa de Moimenta da Beira, onde, com a ajuda dos prestáveis elementos junta de freguesia, se criou um ambiente mais acolhedor e menos… molhado.
A festa à espera em Chaves
Mas, contrariando o dito popular de “merenda comida, companhia desfeita”, continuou a caravana rumo à romana Aquae Flaviae, com o sol a permitir que, pelos menos alguns motociclistas, tirassem o melhor partido de um ambiente que pouco tem a ver com o Lés-a-Lés original. Ambiente bem mais sereno, com condutores maduros, mais interessados em desfrutar das paisagens e das próprias motos do que comerem quilómetros… só porque sim.
Por isso, nada melhor que aproveitar as curvas da larga e bem desenhada N103, atravessando os lugares de Salgueiros, Zido, Sobreiró de Baixo, Curopos, Rebordel, antes da travessia do curioso rio Rabaçal que não tem nascente nem foz. É criado pela união das águas de vários regatos galegos e, ao juntar-se ao Tuela, ganha o nome de de rio Tua. Travessia ainda de Lebução, Bolideira (que alguns aproveitaram para descobrir a curiosidade geológica com o nome do local, uma pedra de várias toneladas que é possível fazer balançar com um dedo apenas…), Águas Frias e Faiões antes chegada triunfal ao Jardim das Termas. Onde, depois da amizade do Moto Cruzeiro de Bragança, na véspera, foi a vez do Grupo Motard de Chaves fazer as honras da casa, com uma receção como só os transmontanos sabem proporcionar.
Tempo de confraternização (com o sol a agraciar todos os participantes do 1.º Portugal de Lés-a-Lés Classic depois de um dia ‘temperamental’) com os ‘obrigatórios’ Pastéis de Chaves acompanhados por umas cervejas e conversas à volta as motos estacionadas na Alameda do Tabolado. De onde partirão, na manhã de sábado, para a segunda etapa, com 165 quilómetros de estradas entre o pitoresco dos carvalhais do Barroso e das aldeias de terras de Basto e a ponta final no industrializado do Vale do Ave. Pelo meio, duas visitas de sonho a coleções particulares de motos antigas, pontos altos de um dia que promete mais uma dose soberba de mototurismo.