Teresa A. Ferreira

Teresa A. Ferreira

Viúva fogosa

Crónica 2: Viúva fogosa

Minha mãe, não falhava com a sua obrigação de comparência, como amiga e boa vizinha, em todos os mortórios e funerais, sendo que, nessa altura, há cerca de 40 anos, velava-se o morto em casa. Fosse rico ou pobre fazia questão de acompanhar todas as exéquias fúnebres, prestar a devida homenagem ao defunto, rezar-lhe as orações, fazer a vigília noturna com as outras mulheres, dado que, nessa noite, ninguém se deitava. O grupo de mulheres, onde ela fazia questão de se inserir, passava aquele último tempo dando conforto e apoio aos familiares do defunto. O sentimento de união entre as pessoas, nesta vila transmontana, sobressaia fortemente.

Rezavam o terço e, depois, noite dentro, quando nenhum familiar estava presente na sala onde se velava o defunto, contavam umas boas anedotas ao desafio. Minha mãe tinha muito jeito. Qualquer pequena e simples anedota, contada por si, fazia rir toda a gente. Respondia-me, quando a questionava sobre o despropósito de contar anedotas no mortório

- Olha, o morto já não vive e dali não passa. E mais vale contar anedotas do que dar campo pra cebolas às mulheres!

Queria dizer-me, com estas singelas palavras, que as mulheres falariam do que não deviam, da vida alheia, assim, riam e o tempo passava mais rápido.

Em certo mortório, após a hora de jantar, minha mãe compareceu, como de costume, com seu elegante vestido preto, meia de vidro, sapato a condizer, bem penteada, terço na mão, casaco pelos ombros, porte ereto desprovido de altivez, uma beleza e encanto naturais, sem sombra de dúvida. Entretanto, no meio das rezas, reparou nuns olhares cruzados entre a viúva e um certo homem. Um piscar de olho, entre eles, denunciou algo. Minha mãe permaneceu indiferente, sem se dar por tida nem achada, não eram contas do seu rosário.

Lá decorreram todos os procedimentos; enterrou-se o defunto; e a viúva sempre em grande pranto, como seria natural.

Tempos depois, alguns meses até, minha mãe foi aviar-se à mercearia da Ti Pinheira, sua madrinha de batismo.

A forma de apresentação do estabelecimento comercial era sui generis. No primeiro andar da moradia, vivia a família; no rés-do-chão, ficava a mercearia e a taberna. Pela porta da esquerda, acediam as mulheres à mercearia, via-se ao fundo um grande balcão para atendimento, madeira enegrecida pelo uso, e todas as caixas e prateleiras expondo os produtos. Pela porta da direita, entravam os homens na taberna, igual balcão ao fundo e um cheiro forte a vinho e aguardente servidos a copo. Por detrás do balcão havia um enorme corredor que ligava as duas divisões onde circulava, para a esquerda ou para a direita, quem estivesse a atender. Esta mercearia tinha um ar frio e sombrio. Cheirava muito a antigamente.

Lembro-me de, algumas vezes, os homens bem bebidos armarem zaragata na taberna. Lá aparecia Ti Pinheira, de pronto, impontando-os porta fora.

Quando minha mãe entrou na mercearia, deu de caras com a viúva num impressionante teatro. Chorava lágrimas verdadeiras pelo marido, lamentando a falta que lhe fazia, as saudades eternas que deixou e não se desvaneciam e um chorrilho de lamúrias. Ti Pinheira, consolava-a com palavras de apoio e solidariedade. Este teatro em vez de comover minha mãe, fez exatamente o oposto. Começou a sentir, dentro de si, um fervilhar de emoções de injustiça, e não se aguentou. Decidiu que esta mulher tinha de ouvir das boas. Ora essa! Que disparate tal teatro! – pensava para consigo. Olhou em redor; reparou que só estavam as três; e vai de dizer à viúva

- Guarda as lágrimas falsas, mulher. Vai derramá-las noutro lado. Vieste aqui enganar a minha madrinha!? Na noite do mortório, do teu homem, vi-te a piscar o olho ao Manel, sua descarada.

Dito isto, a viúva transfigurou-se num ápice. Meteu a mão ao bolso do avental, puxou do lenço para enxugar as lágrimas, assoou ruidosamente o nariz, ajeitou o cabelo, endireitou a espinha e respondeu a minha mãe

- É verdade, Ti América. Vossemecê tem razão. Olhe, nessa noite, botei-lhe abaixo mais o Manel!

Está boa, está! Elas não precisavam de saber que o xaragão[1] tinha pegado fogo, ainda com o morto em casa!

E vós, não me pergunteis quem era a viúva. Este segredo ficou entre elas. Minha mãe nunca se descoseu com o nome da viúva. No entanto… continuo intrigada com a cena teatral. O que terá motivado esta pobre mulher, a fazer tal representação, dizei-me vós, caros leitores?

Quando minha mãe regressava dos funerais trazia sempre um saco cheio de novidades. Muito boa memória tinha. Caso, eu, estivesse de férias escolares em Torre de Dona Chama, logo ia ao seu encontro, com o intuito que me contasse alguma história ou anedota.

A boa disposição com que minha mãe enfrentava a vida, ainda que, por dentro, o seu mundo pudesse estar a desabar, era verdadeiramente contagiante.

Teresa A. Ferreira, 21-11-2020

 

[1] Xaragão - colchão


Partilhar:

+ Crónicas