Ana Soares

Ana Soares

Uma vida no lixo

Na passada semana Portugal ficou em choque com um bebé que, depois de deixado no ecoponto despido, pela própria Mãe, foi felizmente salvo e está actualmente de boa saúde. Todos os detalhes que, entretanto, se conheceram, foram fogosamente escrutinados e discutidos: o facto de a Mãe ser cabo-verdiana, sem abrigo, de 22 anos; a suposta sinalização prévia do caso; o parto na via pública; quem salvou ou não o bebé, enfim. A cada dia se conhece mais sobre esta situação que tem tanto de dramática como de perturbante.

Há quem diga que o culpado foi o Estado, a Sociedade como um todo que não soube ver, com o pouco que olhou, o que estava a acontecer a esta jovem. Há quem a cruxifique sem perdão a Mãe pelo que fez à criança e a rotule como uma desgraçada a quem deveria acontecer tudo de mal. A verdade é que nos dias de hoje a facilidade de julgar é brutal, não só pelo seu carácter imediato como pela facilidade de difundir todas as opiniões, a minha incluída. Julgo que não é isso que nos deve abster de termos opinião e, de se assim entendermos, partilhá-la. Mas lembrando-nos sempre de algo que me parece essencial: estamos a falar de dois seres humanos, cuja dignidade deve ser sempre salvaguardada e alicerçada como essencial a qualquer ser vivo.

É claro que a situação da Mãe tem que ser analisada. É preciso perceber o porquê de ter chegado a esta situação, ao desespero (esperando que não seja nada mais patológico) que tem que estar na origem de uma acção destas por parte de uma Mãe. Perceber até, lateralizando um pouco a situação do bebé, como é que esta pessoa chegou à situação de se prostituir e viver na rua com a idade que tem, num país estrangeiro e sem qualquer apoio. Perceber como esta jovem, grávida, conseguiu manter-se invisível aos olhos de toda a sociedade que diariamente passava por ela na baixa de Lisboa.

Mas isto não pode desculpar o crime hediondo que teve lugar. Ainda que só conheça os detalhes veiculados pela comunicação social, não me parece que possam existir dúvidas que uma Mãe que deixa um recém-nascido dentro de um ecoponto, num saco plástico, despido não espera que o mesmo seja salvo. Não, não aceito que estejamos a falar de abandono. Isso seria, quanto muito, deixá-lo à porta de um hospital, em qualquer lugar e alertar as autoridades de forma anónima ou qualquer outra solução que garantisse o seu cuidado. Seria, de qualquer modo, horrível, um crime, mas os contornos e os objectivos seriam diferentes. Estamos certamente a falar de homicídio qualificado na forma tentada e, como tal, em nada me choca a prisão preventiva. Não há miséria, pobreza ou privação que possa justificar um crime e menos este crime. Não há uma vida que se possa sobrepor ao direito de outra a existir.

A sociedade tem que se preocupar com estes dois seres humanos, mas não desvalorizar a vida do mais débil pelo quer que seja que tenha acontecido a quem o lançou à morte e que ironicamente foi também quem lhe deu a vida. Há que perceber o que aconteceu, tentar evitar que se repita, mas não desvalorizar e menos minorar a gravidade da situação. Pela Mãe, o bebé teria morrido, sem que a sua vida tivesse sequer sido do conhecimento de ninguém. Mais um saco no meio de tantos, num ecoponto.

Uma palavra ainda para o circo mediático que este caso criou. Desde a discussão sobre qual o sem-abrigo que efectivamente salvou o Bebé a uma visita, no mínimo surreal, da Ministra da Justiça à jovem Sara e, pior ainda, a suas declarações. Haja pão, que circo em Portugal parece muito fácil de se montar, até quando a gravidade e a seriedade do tema deveriam exigir, sobretudo de quem tem responsabilidades governativas, cautela, ponderação e trabalho.

Bem-hajam todos aqueles que contribuíram para que o Bebé, carinhosamente chamado de Salvador, possa hoje estar vivo. Que sejam profícuos no seu trabalho aqueles que acompanharem a jovem Sara e os que se debruçarem para perceber o que aconteceu, para que a situação não se repita. Que Sara consiga ultrapassar, com a pena que lhe couber, o que fez e reintegrar-se na sociedade. Que o Pequeno Salvador tenha, ao longo da sua vida, sempre quem o acompanhe e não se esqueça da Luz que certamente o aqueceu nas horas, infindáveis e frias, em que teve lixo como berço e não o regaço terno e quente de uma Mãe. Porque a vida é e tem de ser o primeiro e mais seguro Direito que qualquer ser-humano tem de ver salvaguardado. Por uma sociedade que seja merecedora desse nome.


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