O navio «Prestige», triste símbolo de um mercado económico sem ética e com poucas normas legais, repousa no fundo de um mar incógnito, numa posição incógnita, num estado incógnito e com consequências incógnitas. A sua história, desde que começou a derramar crude, no passado dia 13, permitiu revelar verdades inconfessáveis, hipocrisias sempre encobertas e relações demasiado assimétricas entre os Estados envolvidos.
Para o futuro de Portugal, até talvez tenha sido positivo este incidente. Ficou claro para todos, e até para os líricos da internacional da paz, que um Estado sem força é um Estado demasiado vulnerável ao curso dos acontecimentos da natureza, quando passíveis de serem intervindos pela mão humana.
Ficou claro o desprezo com que, afinal, as autoridades francesas e espanholas nos tratam. O mesmo desprezo com que as autoridades espanholas trataram o drama do Povo Galego, ao qual, também nós, fomos relativamente indiferentes. Ficou clara a hipocrisia e o cinismo das mesmas autoridades quando, sem escrúpulos, tentaram pôr o navio em águas portuguesas e perto da costa portuguesa.
As autoridades espanholas não são o Povo Espanhol. Até porque dificilmente existirá um Povo Espanhol. Existe um Povo Galego, um Povo Andaluz, um Povo Catalão, um Povo Basco, etc.. A maior parte do dito Povo Espanhol até criticará o comportamento das suas autoridades.
Porém, as relações entre Portugal e Espanha devem ser bem pensadas, sob pena de a nossa soberania ser seriamente ameaçada. Até é natural que os espanhóis não se queiram substituir à soberania dos portugueses. Mas qual é a consequência de dominarem o nosso mercado económico e os nossos recursos senão a nossa perda de soberania, na medida em que passam a ser eles a deterem o poder económico que condiciona o nosso poder político, e na medida em que passam a ser eles a seleccionarem as elites que hão-de fazer escolas de pensamento, sobretudo através dos media, e dos quadros superiores das empresas?
Os Portugueses embarcaram, liricamente, no federal-porreirismo da Europa. Abriram os hospitais aos médicos e aos enfermeiros europeus, as escolas aos professores europeus, sem cuidarem de proteger os Portugueses. O mesmo não aconteceu, nem em Espanha, nem em França, nem na Holanda, nem na Dinamarca, nem na Áustria, nem ainda na Alemanha. Ali só pode ser funcionário do Estado quem tiver dupla nacionalidade (por exemplo, a portuguesa e a espanhola, a portuguesa e a francesa, etc.).
Pelo contrário, exemplo do nosso desleixo, em Portugal, qualquer cidadão comunitário se pode candidatar. Até pessoas que não sabem falar Português, embora com as habilitações legais, podem ser professores do ensino primário. Que língua vão ensinar às crianças?
Recentemente, tive conhecimento do caso mais grave de todos, que revela a negligência com que os nossos governos abordaram esta questão. Os professores espanhóis e franceses têm uma classificação final qualitativa máxima de «Sobresaliente» e de «Très bien». O Governo Português tem reconhecido os cursos atribuindo a classificação de 20 valores. Nos concursos, os Portugueses ficam a ver os navios passarem e derramarem o «crude». E Portugal e os Portugueses estão a ser tratados como se estrangeiros fossem na sua terra. Se calhar, é o que merecemos, perante tanta falta de «chá», de cultura; perante tanta arrogância, pedantismo, mau carácter e tanta confusão.
Já agora, que falo em confusão, não resisto a contar um triste episódio de que foi protagonista recente o Senhor Ministro da Ciência e Ensino Superior. Analisando um pretenso desempenho das diferentes instituições, disse que «existe uma linha divisória entre “litoral” e “interior”, linha que passa por Vila Real e Évora, separando uma relativa qualidade das instituições do “litoral” de uma menor qualidade das instituições do “interior”». E que «não faz sentido mandar os estudantes do litoral estudarem no interior para, depois, regressarem ao litoral.». Uma semana antes tinha dito que «a formação de professores é académica e deve ser dada pelas Universidades e não pelos Politécnicos, que devem ter uma vocação técnico-profissional.
Aonde teria querido chegar o Senhor Ministro? Será que o “interior” é que vai pagar as consequências da crise económica? Será que os Doutores e Mestres do “interior” serão piores que os outros, só por trabalharem no “interior”, apesar de formados nas mesmas Universidades que os do “litoral”? Quem, quando e como fez a avaliação das Universidades?
Afinal, o «Prestige» pode não ter sido um incidente e um acidente isolado. Portugal parece, todo ele, um «Prestige» viscoso e unguento a afundar-se. É isto que queremos? Ou seremos mesmo descendentes daqueles que Tito Lívio celebrou nas palavras de Marco António como o «Povo que nem se governa nem quer ser governado»?
* Professor da Escola Superior
de Educação do IPB