O termo foi bem escolhido, é sonante, causa impacto, anuncia novidade, como um novo Estado Novo! Mas, em concreto, o que se esconde por detrás do termo que o primeiro-ministro andou a badalar pelos jornais e pelas conferências? Para enquadrar o seu propósito, que, afinal, é muito menos significativo do que parece, é necessário referir alguns chavões do discurso tecnocrático deste governo.
Em primeiro lugar, a declaração do cónego das Finanças de que os portugueses devem decidir qual o estado que querem sustentar, ou seja, se querem um estado social decente, têm de estar preparados para o pagar.
Em segundo lugar, o famoso buraco estrutural de quatro mil milhões de euros, montante que não é imposto pelo FMI, mas que foi sugerido ao FMI pelo Governo, como resulta claramente do próprio relatório. O governo quis, com efeito, tirar as castanhas do lume com as mãos do FMI.
Em terceiro lugar, a questão da equidade da distribuição dos sacrifícios. O governo tem afirmado que os sacrifícios são para todos, sobretudo depois do chumbo sofrido no Tribunal Constitucional relativamente a algumas normas do orçamento de 2012 e como defesa antecipada contra novas decisões daquele Tribunal no mesmo sentido relativamente ao orçamento de 2013.
Em quarto lugar, a afirmação de que o Estado tem demasiado peso na sociedade e que as funções do Estado poderiam ser mais bem desempenhadas se o respectivo aparelho fosse mais reduzido, o que pede, como consequência lógica, que certas funções de interesse público deveriam ser entregues à iniciativa privada.
O discurso do governo, cuja pretendida concretização os portugueses entendem, resume-se, por conseguinte, a uma medida bem simples: cortar na despesa com a função pública, através de redução do pessoal e cortes de salários e pensões.
A contestação desta linha de pensamento e acção do governo deve passar pela demonstração de que a mesma assenta em dados manipulados ou parciais, em opções políticas pelo menos discutíveis e, no fundo, eivadas de preconceitos ideológicos ou prosseguidas para favorecer certos interesses.
Vejamos o que um cidadão comum com alguma informação, sem ser necessariamente perito em finanças ou em administração pública, pode constatar pela simples leitura de jornais ou análise sumária dos discursos:
Que estado estamos dispostos a pagar? A resposta é simples: um Estado, antes de mais, honesto e transparente, que garanta aos cidadãos os seus direitos fundamentais e proceda aos equilíbrios dos interesses de modo equitativo, exigindo de cada cidadão o contributo proporcionado às suas posses, de acordo com os princípios que a Constituição consagra. Não são os cidadãos que têm de dizer ao Governo como deve aplicar estes princípios: é o governo que tem de arranjar modo de os respeitar, como se propôs ao apresentar-se ao eleitorado. Se não souber ou não quiser fazê-lo, deve declará-lo do modo mais transparente, demitindo-se.
Quanto ao propalado défice orçamental estrutural de quatro mil milhões: o cónego das finanças fez voto de penitência, jurou emagrecer e fazer emagrecer o seu convento, ou seja, a casa de todos nós, olhando para a caixa das esmolas onde, apesar do garrote fiscal, vão caindo cada vez menos moedas de uma economia cada vez mais anémica e de um povo cada vez mais famélico, e decidiu que tinha de poupar quatro mil milhões. É claro que apenas olhou para a caixa das esmolas, deixando de lado as minas de alguns negócios e parcerias alimentados ou protegidos pelo convento. Ora, seria necessário demonstrar que se esgotou a capacidade contributiva geral, já que a capacidade das classes populares está há muito ultrapassada e violentada. Ainda não vimos qualquer explicação plausível sobre a tributação do capital, dos proventos da especulação financeira e dos patrimónios que crescem de ano para ano em progressão geométrica! Donde resulta desde logo a contestação de que os sacrifícios sejam para todos. Até agora, não foi o que se viu!
Sobre a dimensão do aparelho do Estado: os cidadãos sabem o que tem sido o assalto ao aparelho, para o pôr ao serviço dos interesses dos amigos. O que provocou a desorganização e o sobredimensionamento da administração pública não foram os funcionários que, no dia-a-dia, asseguram discretamente os serviços que os cidadãos esperam. Mas a administração pública profissional, a que tem vocação de carreira e estabilidade, a que pode desempenhar as suas funções de modo eficiente e imparcial, essa não agrada aos partidos do poder. Por isso há que sabotá-la pela criação duma administração-sombra, formada por assessores aguerridos e bem pagos, formatados nas escolas das jotas, apoiados pelos gabinetes de advogados e outros consultores onde pontuam os amigos e ex-governantes, deste modo esvaziando, de forma a fazê-la parecer inútil, a função pública legitimada pelo concurso público. Deste modo, o repto que o governo deveria tomar a sério e, isso sim, seria uma verdadeira refundação dos métodos de governação, seria rescindir todos esses contratos com os protegidos do regime. Se, depois disso, houvesse ainda necessidade de cortes de salários ou de empregos, então deveria começar-se por rescindir os contratos não fundados em concurso público, aqueles milhares que, por cada governo que tivemos, ficaram a engrossar as fileiras do funcionalismo em nome da cumplicidade partidária ou de parentesco.
Um governo não será credível enquanto não enfrentar as suas próprias contradições. Este governo, pelo seu comportamento político, mente descaradamente aos portugueses, entrando em contradições diárias entre o que lhes propôs e o que executa. Este governo não é transparente, tem no seu seio pessoas sem a mínima credibilidade cívica e sem vergonha, e não pode atacar as causas da ineficácia do Estado, porque está em conluio com os interesses que vivem dessa ineficácia. Por isso, aplica-se-lhe a máxima política que já vem, pelo menos, da monarquia visigótica: serás poder enquanto fores justo; quando não o fores, deixarás de ser poder! É esta a refundação que o país aceita!