Fernando Campos Gouveia

Fernando Campos Gouveia

Portugal: Retrocesso histórico

Há períodos negros na vida dos povos. Umas vezes por alteração inesperada das condições naturais, outras vezes por inadaptação a um novo contexto político em que os centros de poder mudaram e as relações de força os fragilizaram, outras ainda por guerras internas ou de vizinhança que normalmente conduzem à destruição das referências nacionais. Povos há, no entanto, que sofrem uma desqualificação das suas condições por terem confiado a governação a representantes menos capazes, ou desonestos, ou simplesmente aventureiros sedentos de poder pessoal. Parece ser neste último caso que se enquadra uma progressiva desqualificação de Portugal como Nação. Duas ou três décadas de governação a curto prazo, sem estratégia política, sem doutrina de Estado, sem uma visão de sociedade, limitada a gerir conflitos entre grupos de interesses e tentar manter as clientelas, prosseguindo a conquista ou conservação do poder por todos os meios.
Bem podem vir agora explicar-nos que a culpa é da crise, ou do estado em que outros deixaram as finanças públicas, ou do apego exagerado dos portugueses a padrões de consumo inadequados.
É verdade que um país que preza a sua soberania deve manter uma conduta pública digna, designadamente na ordem externa, para assim garantir o respeito da Comunidade Internacional. É verdade que as dívidas se devem pagar e o endividamento deve manter-se em níveis compatíveis com a capacidade de produção de riqueza do País. Mas isto, que é verdade, não pode ser o pretexto para subverter o Estado Social que se construiu à custa de muita luta política e de muitos séculos de aquisições sociais. E sobretudo não pode servir de pretexto para desenhar, à revelia do povo, um novo tipo de sociedade, caracterizada por um liberalismo irresponsável que ameaça romper toda e qualquer solidariedade nacional, a necessária solidariedade entre gerações e a garantia da perenidade da Nação.
Entre os efeitos mais nefastos desta governação, podem apontar-se os seguintes, que colocam em risco a dignidade nacional e os valores nacionais e ameaçam o nosso futuro colectivo:
1. A desertificação do país e o declínio da natalidade.
Quando nos dizem que o desemprego está a diminuir, com base unicamente nos registos de desempregados inscritos nos centros de emprego, podemos facilmente concluir que é uma fraude : Esses registos escondem a realidade do país, pelo menos por três motivos : escamoteiam as diversas situações de precariedade, desde estágios a programas diversos de pretensa formação, quando não mesmo situações de abuso social ou escravatura ; ignoram que os desempregados mais idosos passam naturalmente para a situação de aposentados ou morrem; fingem não ver os números assustadores da emigração. A emigração, que atingiu níveis de sangria equivalentes aos dos anos sessenta, significa sobretudo o abandono do interior do país, já quase um deserto humano desde o último grande fluxo migratório dos anos sessenta e setenta do século passado. Mas tem outras consequências para o futuro : muitos dos portugueses que emigram, com formação superior, são uma força criativa que se perde, provavelmente a título definitivo, privando o país dos seus quadros para a geração seguinte . Além disso, toda a emigração representa o êxodo da força regeneradora do país: a geração em condições de formar família vai constituí-la no exterior, privando a Nação da sua vitalidade, provocando a diminuição alarmante da população e criando um hiato entre gerações.

2. O agravamento da desigualdade e a consciência dela.
Tem sido tratado frequentemente nos meios de comunicação o agravamento do fosso que separa uma pequena percentagem de privilegiados da grande maioria das classes trabalhadoras. Mesmo que este problema esteja na ordem do dia a nível internacional, já que o mesmo fosso entre ricos e pobres se verifica à escala mundial, como consequência essencialmente do triunfo de políticas neoliberais a partir da década de oitenta do século passado, a consciência da desigualdade em Portugal é um elemento de fractura da unidade nacional e leva à desconfiança generalizada dos cidadãos em relação à classe dirigente, na qual não vislumbram nem qualidades nem a vontade de promover uma sociedade mais justa. Infelizmente, os governos que se têm sucedido, conduzidos pelos dois maiores partidos políticos, têm-se mostrado muito semelhantes neste aspecto. Nas discussões acesas entre eles, nunca se colocou em cima da mesa, por exemplo, um objectivo nacional de longo prazo mas com metas quantificadas, que seria o de diminuir a desigualdade social. A maioria dos cidadãos têm assim a consciência de que empobreceram enquanto uma minoria enriqueceu sem se saber muito bem como, mas em todo o caso à custa do justo equilíbrio dos interesses sociais.

3. A degradação dos valores éticos na política e na sociedade
A percepção da actividade política pelos cidadãos, alimentada evidentemente pela comunicação social e pela observação próxima de casos concretos, é que a actividade política se tornou, pelo menos para os partidos do chamado arco da governação, um meio de atingir um poder que conduz não apenas à captura dos lugares de destaque na administração pública, mas igualmente a uma situação de conluio com empresas e grupos de interesses que permite o benefício mútuo e o saque despudorado do Estado. A confusão de interesses entre o público e o privado atingiu os limites da pouca-vergonha. Os negócios ruinosos para o Estado estão aí, escancarados na praça pública. A complacência do poder parece só poder explicar-se porque todos têm telhados de vidro ou até têm interesses partilhados. Ministros, deputados, altos funcionários, fazem a rotação permanente entre os ministérios e os grandes grupos, encontrando-se com frequência na gestão de empresas que tutelaram e com quem celebraram negócios em representação do Estado, arruinando normalmente o interesse público. Muitos deputados tratam, nas comissões parlamentares, processos a cujos interesses estão ligados através dos seus gabinetes de advogados, defendendo-se com a descarada candura de que a lei (que eles fazem) o não proíbe. Os casos que aparecem na comunicação social e acabam por vezes por chegar aos tribunais arrastam-se por décadas. Os resultados da aplicação (ou inaplicação) da justiça são miseráveis, dando aos mais ambiciosos a quase certeza da impunidade, ou, quando muito, de uma pena simbólica sem qualquer relação com os valores da defraudação do interesse público.

Nesta situação, os que podem fogem do país, os mais capazes renunciam a envolver-se na política, deixando o campo livre aos oportunistas.

Este retrocesso histórico tem que ter um fim, que virá inevitavelmente quando a maioria dos portugueses deixarem de encarar os partidos políticos como um clubismo de insígnias e começarem a julgar os políticos não pelos discursos, mas pelos resultados nas suas vidas.


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