Fernando Campos Gouveia

Fernando Campos Gouveia

Algumas reflexões sobre a eutanásia

A discussão pública do tema da morte assistida, mais propriamente da descriminalização dos atos conducentes à eutanásia, revelou‑se bastante ponderada, se excetuarmos os habituais comentários pouco consistentes ou até agressivos em redes sociais ou em comentários abertos nos jornais. Este comportamento, que corresponde a um patamar novo da expressão da cidadania, constituiu uma novidade em relação a discussões de temas anteriores ditos fraturantes, como o aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Para a relativa tranquilidade do debate terá contribuído o facto de os principais partidos não terem exigido disciplina de voto aos seus deputados, e os partidos que tomaram posição pública o terem feito de forma respeitosa das opiniões contrárias. Tanto melhor, pois o assunto entra de tal forma no âmago da própria condição humana que seria despropositado verberar as opiniões contrárias, sabendo‑se que, de um lado e do outro, era evidente a dificuldade de tomar uma posição definitiva e sem reservas.

É evidente que o sofrimento terminal pode conduzir a estados de desespero e a situações insustentáveis para os próprios pacientes e suas famílias. E todos os que se inclinaram para a recusa da eutanásia devem ter sentido esse sofrimento com a mesma compaixão dos que se inclinaram para a respetiva aprovação, mesmo se, por razões de consciência profunda, por crença religiosa ou posição filosófica, não foram capazes de dar um passo em frente na evolução da relação com a morte. Nestes me incluo, sem qualquer ressentimento em relação àqueles que se sentiram preparados para dar esse passo, entendendo‑o como avanço civilizacional.

Algumas das razões para a minha recusa podem radicar nesse sentimento de que estamos em presença de um elemento essencial da condição humana, o elemento da morte, e a sacralidade da vida, que se deve extinguir por si e não por intervenção alheia. O direito à vida é de tal forma fundacional da condição humana que se mostra anterior aos sistemas jurídicos, razão pela qual muito dificilmente admite limitações, seja da lei, seja de tradições ou de sacrifícios rituais. Mas é evidente que a dignidade humana exige que as sociedades sejam capazes de respeitar e remediar o sofrimento terminal e acompanhar os pacientes terminais até ao último segundo de vida. Só dessa forma uma sociedade pode respeitar‑se a si própria. Passará essa dignificação da morte pela admissão legal da eutanásia?

As minhas dúvidas relativamente a essa solução não têm que ver com a ajuda nos casos-limite excecionais em que a manutenção da vida parece contrária à dignidade e à vontade expressa dos doentes terminais, mas antes com a instituição desses casos excecionais em paradigma de intervenção. É que, conhecendo todos nós a fraqueza humana e a evolução da sociedade para padrões de hedonismo e de individualismo, para a sacralização do conforto material em detrimento dos valores da humanidade e da compaixão, para a justificação do lucro e do negócio sem barreiras morais ou limites éticos, não será difícil imaginar que a institucionalização da eutanásia conduziria a curto ou a médio prazo ao negócio da morte alegadamente confortável, não em nome da tal dignificação do doente terminal, mas por considerações económicas, em nome da liberdade empresarial ou de gestão orçamental dos recursos.

Em crónica aqui publicada pelo prezado cronista Prof. Henrique Ferreira, este defendia a recusa da eutanásia, designadamente por razões de ilegalidade na forma de votação no Parlamento e na ilegitimidade dos deputados. Com todo o respeito, os seus argumentos não me convencem. Os deputados, mesmo sendo apresentados ao eleitorado em listas partidárias, têm legitimidade própria e representam todo o eleitorado, sendo teoricamente a manifestação da pluralidade das opiniões do universo eleitoral, e exercem o seu mandato livremente, ou seja, independentemente da vontade dos partidos que os propuseram, podendo votar livremente no sentido que entenderem. A questão da apresentação das listas é de natureza meramente processual e é uma das formas possíveis de designação de candidatos a mandatos públicos, a par, por exemplo, da propositura por um certo número de eleitores noutro tipo de eleições. Quanto à questão de não poderem votar em matéria de consciência, o problema é de fundo e prende‑se com a questão de saber se há valores a tal ponto intocáveis que não podem ser objeto de deliberação por quem exerce o poder. Não havendo uma definição jurídica do que seja matéria de consciência, sempre se poderá elencar um conjunto de matérias em que a intervenção do poder é limitada, seja pelos princípios fundamentais do direito, seja por instrumentos jurídicos que consagram direitos fundamentais. Parece-me que este tipo de limitação não impede a discussão destas matérias, quanto mais não seja para chegar à conclusão de que não se deve deliberar sobre elas.


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