Teresa A. Ferreira

Teresa A. Ferreira

Madame Josephine: casamento em Alvites

- Um biscoito para a Jasmim; um para o Freddie…

- Madame: dá licença?

- Ah, o correio! Deixe-o em cima da minha secretária, por favor. Alguma novidade?

- Parece que sim, Madame.

- Os meus meninos querem vir comigo? Será que temos algum mistério para resolver? Meus bichanos lindos…

- Carta da galeria para o Antoine, e contas e mais contas e…um convite de casamento!

Começou por sentir o cheiro do envelope e só depois o voltou para si. Vinha da sobrinha Cecília. Abriu-o e foi lendo, palavra por palavra, como se revisitasse o tempo em que anunciara o seu casamento com Antoine, um pintor francês, excêntrico, que amava profundamente como a sua alma. Fazia-a rir, rir muito, especialmente nos dias em que a disposição não abundava. Era carinhoso e aquele sotaque parisiense…derretia-a. Adotara o nome Josephine para condizer com o nome francês do marido. Tudo tinha de bater certo, na hora certa e na devida perfeição. Era a antítese de Antoine, que só o amor perdoa e aceita. Deram-lhe no batismo o nome de Josefina que ela alterou quando publicou a primeira obra literária. Gostava de escrever com os gatos à sua volta – dizia que lhe davam paz para voar até onde a imagética lhe permitisse. Nunca tiveram filhos, talvez por isso se tenham dedicado afincadamente à arte. Antoine era muito conhecido no meio artístico e vinha de uma família nobre e abastada.

Correu para o ateliê de Antoine – Mon amour, regarde!

- Convidaram-nos para o casamento da minha sobrinha Cecília, a petit Cecília. É daqui a um mês. Vamos?

- Bem sabes que não posso. Tenho a exposição para preparar. Como gostaria de ir a Portugal! Tenho saudades de Trás-os-Montes - em especial de Alvites - e do nosso solar que está fechado.

- A mana cuida dos dois solares. Quando lá vou, tudo está impecável.

- Com a mesada que nos cobra…forrava as paredes com cristais.

- Deixa para lá isso. O importante é não estar ao abandono. A aldeia de Alvites e os seus três solares... Onde já viste isso?

- É raro, sim, e sai-nos muito caro.

- Vou com o motorista à loja da Madame Hernandez para escolher tecidos e mandar fazer umas roupas bem modernas. Quero ir impecável.

- Au revoir mon amour. Bisous, bisous…trago-te bombons da Rochoux. Precisas de alguma coisa?

- Não, não preciso de nada.

Os dias iam passando, numa velocidade alucinante e a tensão de revisitar o berço faziam-na escrever compulsivamente. Andava às voltas com um romance-mistério, bem ao jeito da velha escola em que era preciso olho vivo e prestar atenção a todos, mas todos os pormenores. O facto de ir a Portugal, sendo a sua família cheia de tricas e casos muito bem escondidos, dava-lhe inspiração para escrever com mais fervor.

Chegou o momento da despedida de Antoine, deixando-lhe mil recomendações que repetia à governanta: cuidado com a saúde, a medicação a horas, arejar o ateliê por causa do cheiro das tintas, que se alimente e durma bem, o cachecol, ponha o boné quando for para o jardim, cuidado com o sol… foram tantas e tantas as recomendações, só compreensíveis por quem, ao fim de vinte e cinco anos, ainda mantém a chama do amor bem vibrante.

A viagem, naquele tempo, até Portugal, fazia-se de comboio e, na reta final, um carro de praça fazia o resto do percurso.

Madame Josephine dotada de um humor fino e certeiro, não deixava passar nada em claro. Fazia imensas perguntas por onde passava. Gostava de se inteirar do real estado da nação, porque os jornais…papel sujeito à censura. Não havia nada como um tête-à-tête para tomar a dianteira das situações.

- Chegou a Madame! Venham todos recebê-la.

- Mana querida! Que elegante está.

- Estou em dieta rigorosa, vai para um mês, para caber nos vestidos – todos riram da graça, pois sabiam que era magra de natureza e um bom garfo.

- Mandei arranjar o seu solar para a mana estar mais à vontade.

- Fez bem, mana Dione.

- Vamos subir para descansar um pouco?

- Sim, apetece-me um banho e…

Descansar?! Isso é pedir o impossível a esta alma inquieta. Mal tomou banho e trocou de roupa, comeu uns biscoitos, bebeu um copo de leite e adeus. Não lhe puseram mais os olhos em cima, no resto do dia. Fora ver as propriedades, os jardins, o Padre, a amiga Augusta, a tia Celestinha e todos quantos ainda moravam no seu coração. Passou na capela da família que está no lado esquerdo da Igreja de São Vicente de Alvites - gostava de lá ir agradecer as bençãos que recebia. E, nestas andanças, foi-se inteirando das novas que por ali havia.

O cunhado Filipe continuava incorrigível: comer, beber, jogo a dinheiro, mulheres e boa vida; a irmã Dione tratava de tudo como podia, mas a criadagem, conhecendo-lhe o fraco, abusava; o sobrinho Silvestre seguia os passos do pai, um bon vivant; quanto à pequena que estava prestes a casar…era um mistério a desvendar.

O casamento não era por amor. Entregara o coração ao jardineiro que, por sinal… Pobre Cecília!

Ainda bem que chegou com alguns dias de antecedência para poder estudar tudo. Esta família tinha saídas pouco airosas e sempre era melhor prevenir.

Aceitou jantar no solar da irmã para conhecer o noivo da sobrinha, Arnaldo de Santos Pereira e Cunha. Sem que ele desse conta, observou-o em todos os jeitos e trejeitos. – Que tipo tão enfadonho e ao mesmo tempo de risinhas falsas, hipócrita. Parece que lhe encomendaram o recado. Que motivos o levavam a estar ali, sabendo que a pequena mal olhava para ele? Uma dívida de jogo? Ou seria ainda pior?

Por que razão a mana Dione suportava aquele burgesso do Filipe? Anafado, descortês, jogador, não sabia o que era trabalhar…

Josephine, num dos seus passeios pelos jardins que unem os dois solares, deu com a estufa onde o jardineiro Gabriel cuidava das plantas e nas traseiras havia uns humildes aposentos. A curiosidade falou mais alto. Entrou e andou a ver as várias obras de pintura que ele tinha por lá espalhadas, mas havia uma que estava coberta com um lençol…


Continua...na próxima 6ª feira…


© 𝑻𝒆𝒓𝒆𝒔𝒂 𝒅𝒐 𝑨𝒎𝒑𝒂𝒓𝒐 𝑭𝒆𝒓𝒓𝒆𝒊𝒓𝒂, 26-06-2023

   𝙉𝙖𝙩𝙪𝙧𝙖𝙡 𝙙𝙚 𝙏𝙤𝙧𝙧𝙚 𝙙𝙚 𝘿𝙤𝙣𝙖 𝘾𝙝𝙖𝙢𝙖,
   Mirandela, Bragança, Portugal.

Este texto é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.


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