Chamava-se João ou talvez António, já não sei, o amigo de Francisco. Um amigo considerado, digno, estimado e do qual nada tinha a contestar. Durante muitos anos, trocaram ideias, projectos, falaram de tudo e de todos os que eram por eles considerados. Francisco, apesar de não ser uma pessoa exuberante, era suficientemente conhecido e considerado por todos. Não pertencia ao grupo dos ilustres anónimos, como se dizia. Por seu lado, João ou António, tanto faz, não era pessoa que se perdesse nas ruas e ruelas do burgo. Pouco conhecido pessoalmente, era pessoa de poucos amigos. Tímido, introvertido, ambicioso e de poucas falas, João refugiava-se nos seus hábitos, perdendo aí todos os momentos que a própria liberdade lhe concedia.
Um dia tudo mudou. Uma carta trazia com ela o veneno de uma loucura infinita e Francisco não compreendeu a razão de tal atitude. O seu amigo insultava-o sem justificar coisa alguma. Um manto de mistério profundo atravessou a mente do incauto amigo e procurou por entre as linhas e as palavras alinhavadas, o porquê de tal desnorte. Não encontrou. Atingido pela calúnia e pela infâmia, resolveu pedir explicações de tal agressividade. A resposta não chegou satisfatoriamente, nem justificava o procedimento desatinado do amigo. Afinal, nada havia que o justificasse! Não podia ter justificação!
Na dúvida porém, Francisco resolveu conceder um favor ao amigo. Há sempre uma segunda oportunidade! Não entendia como ele tinha sido capaz de descer tão baixo, ao ponto de perder um pouco da sua própria dignidade! Realmente há dias difíceis! E quando as coisas correm mal, temos a tentação de agredir mesmo os mais próximos como os filhos, a mulher e os amigos. Enfim! É compreensível! Ou talvez não!?
Francisco, sentou-se à secretária e resolveu responder ao amigo. Falar-lhe da loucura que ele tinha cometido. Afinal os amigos servem para isso mesmo!
“António! Não consegui descodificar a tua mensagem nem o seu propósito. É deveras aterrador pensar que a loucura terá rondado a tua porta e te terá obrigado a refugiar atrás das grades do teu jardim imaginário. Como foi possível? Será que a ambição te toldou o discernimento que eu julgava ser teu apanágio? Cuidado, meu amigo. Cuidado! Olha que o dinheiro não compra tudo! Pode comprar casa, mas não compra um lar; pode comprar um relógio, mas não compra o tempo; pode comprar uma posição, mas não compra o respeito; pode comprar um livro, mas não compra o conhecimento; pode comprar remédios, mas não compra a saúde; pode comprar uma cama, mas não compra o sono; pode comprar até sangue, mas não compra a vida!
António! Nesta vida há loucuras que não se podem cometer. Odiar as rosas só porque uma te picou?! Entregar todos os teus sonhos só porque um deles não se realizou?! Desistir de todos os esforços, só porque um deles fracassou?! Francamente, António! Há sempre uma outra chance, uma outra amizade, um outro amor, uma outra força! É loucura condenar todas as amizades só porque uma te traiu, ou descrer de todas elas só porque uma te foi infiel.
António, é preciso procurar ser mais feliz cada dia que passa. Tenta, mas tenta com toda a tua força e não te deixes vergar pela codícia, pela ambição ou pelo ódio. Não te deixes dominar pelos sentimentos mais baixos e, sobretudo, não percas a tua dignidade. Afinal, tu sabes como comportar-te e sabes ser digno. És inteligente e por isso não percebo o facto de te venderes aos mais baixos valores da moral e da ética. Mas enfim, eu perdoo-te a tua fraqueza e quando necessitares de um ombro amigo, lembra-te que ainda há quem saiba usar o perdão em vez da sanção.
O teu amigo, Francisco.”
Satisfeito consigo mesmo, dobrou a missiva, meteu-a num envelope e fechou-o com todo o cuidado, como se lá dentro estivesse o maior tesouro. Estava consciente disso. No dia seguinte ela seguiria o seu destino. E seguiu.
Passaram meses. O tempo, célere no seu passar, levava e trazia mensagens, mas não a que Francisco pretendia. Também o vento era portador de palavras invisíveis, frases feitas e questões das mais variadas. O eco das suas palavras, não se fazia ouvir. Pelo menos estava com a consciência tranquila.
Mas a resposta chegou. João ou António, não sei, tinha sucumbido a uma qualquer apoplexia. Fim triste aquele! No chão do seu quarto, foi encontrada uma folha de papel, simples, sem linhas, onde algumas palavras, poucas, dançavam na sua inquietude saídas da fragilidade de uns dedos trémulos, certamente, mas de um significado profundo.
Meu amigo, que o teu perdão me sirva de lição…
Loucuras ...

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